Pretendemos, aqui, dar continuidade ao texto O coronavírus na clínica psicanalítica, retomando também algumas reflexões que Patrícia L. Paione Grinfeld apresenta em Psicoterapia online com crianças: é possível?

Partimos da questão de Patrícia: psicoterapia online com crianças, é possível? Ela já respondeu: sim, é. Dadas algumas condições. Quais são essas?

Precisamos de um pilar teórico para sustentar nossas propostas técnicas. Só haverá um processo analítico se formos capazes de criar um espaço transicional, no qual se exercitem o holding, o handling e a apresentação de objetos (conceitos desenvolvidos pelo pediatra e psicanalista Donald Winnicott – vide Jan Abram em A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras, Rio de Janeiro: Revinter, 2000).

O espaço transicional é um vão que se estabelece originalmente entre mãe e bebê, posteriormente entre o sujeito e qualquer objeto, onde o bebê pode manifestar sua necessidade, seu desejo, que é captado pela mãe (holding, acolhimento). Essa mãe, ou quem cumpra com a função materna, intervém (handling) oferecendo ao bebê algo que vá de algum modo ao encontro dessa necessidade (apresentação de objeto). O bebê, a partir disto, cria algo, assim como a mãe.

Exemplificando: uma criança de um ano e meio tenta morder a mãe (desejo de atacar a mãe que não está lhe dando suficiente atenção). Essa a impede (apresenta-lhe um limite, uma interdição social, a existência de um outro), mas lhe oferece uma almofada para morder. A criança aceita, morde repetidamente a almofada criando a fantasia de ser liberada para viver sua agressividade. A mãe se sente reconfortada por ter encontrado uma forma de ajudar o filho.

Esse pressuposto vale para qualquer idade. Numa sessão analítica, o paciente apresenta um material. O analista faz uma intervenção (que pode até ser o silêncio) de algo que sente ter a ver com esse material. O paciente lida à sua maneira com essa intervenção, assim como o analista. Ambos recriam, com seus recursos, aquela experiência.

Dado o fundamento, vamos à proposta específica deste texto: como criar um espaço transicional numa relação online?

Primeiro pressuposto: o que significa esse tipo de relação para o analista quando ele está extremamente inseguro por ter saído de sua “caixinha” (o setting tradicional), quando a relação com o meio eletrônico lhe é muito desconfortável, quando ele não acredita na possibilidade de um trabalho eficaz por esse meio? Sabemos que nessas situações a relação analítica fica comprometida.

É claro que todos nós sentimos um pouco disso tudo: a questão é “quanto?”. Disso depende que ela resulte numa paralisia, ou num desafio a ser vencido.

Vamos começar pelo mais difícil: o trabalho com crianças. Acreditamos que a terapia online com crianças menores de 5 anos tem muitos obstáculos. Começando pelos técnicos: a criança pequena não fica na frente da câmara, o que torna necessária a presença de um terceiro (mãe, pai, irmão…) para manejar a câmara, mas também para ajudar a criança em situações nas quais ela precisa de alguém que a auxilie a fazer algo que ela ainda não consegue fazer sozinha (pegar um brinquedo, abrir um estojo) ou a não se colocar em risco (ao tentar alcançar um objeto escalando uma estante, se enroscar com um fio).

Considerando que no atendimento online temos a ausência do corpo, substituído pela imagem na tela, a presença de um terceiro faz-se necessária também para intermediar a relação com o analista, já que para essas crianças as capacidades de simbolização, de integrar a noção de perto-longe, de fantasia-realidade ainda não estão claramente estabelecidas. Essa presença, contudo, é uma presença que, só por estar na cena analítica, precisa ser considerada no trabalho. A criança está falando para a mãe, para o analista ou para si mesma? O que a pessoa presente está vivenciando em relação ao que está acontecendo? Ela está se comportando de forma diferente do que costuma fazer e como isso é sentido pela criança? Estas são algumas perguntas que não podemos perder de vista.

A criança pequena também precisa de um tempo menor. Uma alternativa encontrada por uma analista que já vem desenvolvendo esse trabalho: fazer duas sessões de 30 minutos na semana ao invés de uma com 50 minutos.

A partir dos 6 anos a sessão terapeuta-criança já se torna possível, ao menos na maioria dos casos. E normalmente começa, espontaneamente, com a criança apresentando seu espaço – seu quarto, seus brinquedos, sua casa. É importante observar o que ela escolhe para mostrar, e o que não mostra. E fazer uma intervenção relativa a isso. Por exemplo: “Ah, então você gosta muito dessa boneca? Como ela se chama? O que ela gosta? Ela está chateada?”. É preciso oferecer algo (um objeto, no sentido psicanalítico) que vá ao encontro do que a criança está mostrando, dando-lhe acolhimento (holding) ao que está sentindo ou pensando, e ao mesmo tempo oferecendo-lhe um desafio. E deixar a sessão se desenrolar a partir disto, estando disponível ao que vai aparecendo.

Para as crianças maiores a tela pode promover a ressignificação de sua relação com o analista, onde se mantem o essencial: a relação afetiva, a transferência. A criança que possui um mundo interno rico percebe este novo espaço como uma oportunidade de novos desafios. Ela pode sentir prazer ao ser agente do processo e criar atividades novas, a partir de propostas do analista ou simplesmente usando sua criatividade.

Há uma técnica que Winnicott propõe que facilita esse processo: o jogo do rabisco (Winnicott, D.W. Therapeutic Consultations in Child Psychiatry, London: Hogarth Press, 1971). O analista faz um rabisco e pede que a criança (ou adolescente) o transforme no que quiser, depois, se quiser, o nomeie e comente. Em seguida, há uma inversão de papéis: o paciente faz o rabisco, e o analista o converte em algo. A questão fundamental é a horizontalidade de papéis, a criação a partir do outro e o encontro de inconscientes. Quanto mais solto o analista estiver, sem se preocupar em interpretar naquele momento, mais rico é o resultado.

Mas como fazer isso online? O importante é manter o pressuposto, e poder criar. Algumas possibilidades: o analista começa uma frase e o paciente a completa; depois inverte. Começa-se uma história, e ele completa. A criança faz um desenho e o analista tem que adivinhar o que ela desenhou, com dicas: depois inverte. Uma criança de 5 anos, em início de alfabetização, escreveu letras e a analista tinha que ler; depois, inversão. As próprias crianças, e a criatividade e abertura do analista, podem fazer surgir outros formatos, como o jogo da forca, em que podemos ir escolhendo palavras significativas (ciúme, tristeza, etc.) com dicas (algo que você sente quando…). Uma outra vinheta ilustrativa: a analista propôs a uma criança de 8 anos uma atividade com cartas com sentimentos/sensações diversas (fome, saudade, sono, medo, saudade, solidão, etc.), onde tanto a analista como a criança teriam que desenhar para expressar a palavra na carta, para a outra adivinhar. Terminada a atividade a criança desenhou uma casquinha de sorvete gigante, com muitos sabores. A analista tinha que adivinhar esses sabores. Alguns eram de frutas ou chocolate, outros ela criou (nuvem, marshmallow). Que espaço rico e saboroso (potencial) foi criado!

Há alguns jogos prontos que também podem gerar um espaço transicional: Story Cubes, Roblox, assim como alguns games online, como é o caso do Adopt Me. Game mais jogado na plataforma Roblox (já desde 2019), o Adopt Me apresenta uma cidade com casas e cenários coloridos e em formatos arredondados (fofinhos), e oferece a possibilidade da criança jogar desde a perspectiva de um bebê, que vai buscar pais que o adotem, ou de um adulto, que vai buscar bebês para constituir família. As interações com as crianças neste game fornecem um material riquíssimo a ser trabalhado: ao mesmo tempo em que colocam a criança no lugar daquele que ensina (o que traz grande prazer), abre um espaço imenso para as projeções. Sem contar que nos games as crianças são mais autênticas do que no âmbito social, o que torna tais jogos uma ferramenta analítica muito valiosa.

Temos certeza de que os leitores podem aumentar essa lista com suas próprias experiências.

Quanto ao trabalho com adultos: temos nos surpreendido com a profundidade do material que vem aparecendo nos atendimentos online. Alguns, porque o paciente, fisicamente distante, se sente menos “envergonhado” de trazer conteúdos, como os de cunho sexual. Alguns improvisaram um divã, fazendo a sessão deitados na própria cama. Mas, na maioria dos casos, talvez o isolamento aumente o contato do paciente com suas questões mais profundas. Como vários analistas vêm apontando, é impressionante a qualidade e a profundidade dos sonhos que vêm sendo relatados. Que, muitas vezes, têm duas dimensões: a atual, ligada à covid-19 (inclusive há pesquisadores coletando o conteúdo desses sonhos), e uma muito mais profunda.

Um exemplo: uma paciente, que está apavorada com o coronavírus, sonha que está tentando desesperadamente fechar a porta da sua cozinha, mas a fechadura está emperrada. Abre-se um vão, e lá está o pai. Evidentemente trata-se do medo de ser infectada, da impotência diante dele. Mas, dando uma dimensão tão aterrorizante ao vírus, está o pai da infância.

Outra paciente sonha que está num avião enorme, cheio de pessoas armadas. Ela também tem uma arma. Abre-se a porta de emergência e as pessoas escorregam. O escorregador está cheio de desinfetante. Ela sente que cai sem parar e acorda aterrorizada.

Novamente, o significado do mundo (avião) perigoso, ameaçador (cheio de vírus). E esperança (o desinfetante) mas o reviver de uma situação absolutamente primitiva: nascer para um mundo incapaz de acolhê-la.

Poderíamos ir longe nos exemplos. Mas acreditamos que o leitor possa fazê-lo por si mesmo. O importante é: a pandemia trouxe muito sofrimento. Ao mesmo tempo, exige de nós posturas inovadoras e enriquecedoras: flexibilidade, criatividade. E coragem para enfrentar o novo.

Imagem: Markus Spiske, por Unsplash.

Texto escrito por Cláudia Meyer Sanches e Renate Meyer Sanches.

A Cláudia é psicóloga (PUC-SP), especializada em crianças, pré-adolescentes e adolescentes. Consultora de projetos de pesquisa de mercado há 26 anos, atendendo a grandes marcas e empresas voltadas ao universo infanto-juvenil.

A Renate é psicóloga (PUC-SP), psicanalista, mestre em Psicologia Social (PUC-SP), doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP) e professora aposentada da mesma instituição. Autora dos livros Psicanálise e Educação: questões do cotidiano, Conta de novo, mãe: histórias que ajudam a crescer e Winnicott na clínica e na instituição (todos pela Editora Escuta). 

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