Quem tem filhos ou convive com crianças possivelmente já tenha dito ou ouvido a frase “meu filho não come” acompanhada de explicações ou justificativas que tentam dar algum sentido ao que é vivido: “porque ele tem…” restrição alimentar, seletividade alimentar, intolerância alimentar. Se de um lado tais explicações ou justificativas dão certo alívio ao nomear uma situação que escapa do esperado, de outro deixa de fora o caráter relacional da alimentação.

A alimentação, com raríssimas exceções, é a primeira experiência de troca com o outro, o que a torna um protótipo das relações posteriores. Nas trocas iniciais, o bebê “ingere” junto com o leite os afetos de quem o amamenta (e mais tarde, alimenta) pela maneira como ele é segurado, pela temperatura, cheiro e sons corporais do cuidador, pelo olhar que o olha, pela voz que lhe dirige palavras, pela disponibilidade emocional de quem cuida dele. Por sua vez, o cuidador também faz sua “ingesta” do alimento afetivo que o bebê oferece: uma boa pega, um olhar apaixonado, o regozijo após a mamada etc.

Quando quem amamenta e quem é amamentado vivenciam a amamentação como uma experiência compartilhada de prazer, o leite/alimento, mais do que ingerido, é bem digerido. Porém, se há algum descompasso nesse encontro, o bebê/criança, para se proteger do desprazer que acompanha a amamentação/alimentação, “fecha a boca” para o que é vivido como intrusivo ou destrutivo – a angústia e os temores do cuidador/ambiente presentes na experiência emocional de amamentar/alimentar – e não para o alimento em si.

Com a boca cerrada, o adulto fica mais angustiado e temeroso (uma das fantasias mais comuns é que a criança morra de fome), levando-o a fazer “de tudo” para que o bebê/criança se alimente. Com a angústia do cuidador aumentada, mais barreiras alimentares são erguidas, fazendo do momento da alimentação um verdadeiro campo de batalha.

As telas, nessas situações, costumam entrar em cena como um recurso para quebrar esse ciclo. Elas “distraem” a criança daquilo que a angustia possibilitando-a comer – para sobreviver e não para viver o prazer da alimentação, das trocas, descobertas e experiências sensoriais que a envolvem (ou deveriam envolver). Fixada à tela, a criança fica privada do que acontece ao seu redor (e com ela mesma), deixando de se nutrir dos afetos e experimentações que tanto precisa para se desenvolver.

Com um repertório mais enxuto, o pouco que existe ganha tom de especial, seleto, tornando o diferente não tolerável por ser ameaçador. Por este motivo, as dificuldades alimentares, com frequência, vêm acompanhadas de outras dificuldades relacionais (birras, por exemplo) ou atrasos no desenvolvimento, sobretudo na primeiríssima infância, quando as trocas com o ambiente são fundamentais para a arquitetura cerebral e a estruturação psíquica. Assim, a mesma tela, que a princípio possibilita certa trégua alimentar, é também obstáculo para ingestão de alimentos, uma vez que esta é indissociável da alimentação afetiva.

Então, tirar a tela resolve, perguntam algumas mães e pais?

Só tirar a tela não resolve. No contexto aqui descrito é provável que a criança, sem a tela, se desorganize provocando comportamentos indesejados: bater no adulto, se jogar no chão, chorar até vomitar, arremessar o prato longe etc.

Para romper com esse ciclo é fundamental pinçar e destrinchar os substantivos que acompanham o ato alimentar (restrição, seletividade, intolerância, entre outros), para encontrar outros significados ao que se revela, na alimentação, uma dificuldade relacional: quais restrições de experiências afetivas e sensoriais a criança vivencia? Quais são as escolhas que ela faz e não faz, quando já poderia fazê-las? O que é intolerável para a criança que ela gostaria de deixar longe de si?

A resposta a essas perguntas são sempre singulares. No entanto, toda criança precisa, em lugar da tela, encontrar um ambiente que lhe ofereça um cardápio de trocas variado e apetitoso e, por isso, mais interessante do que o apresentado pelas telas, tanto no que se refere ao conteúdo quanto às experiências sensoriais que ficam limitadas ao olhar fixado e não móvel, à audição de sons que não interagem ou não se modulam em resposta às colocações da criança e a uma experiência tátil sempre em uma mesma superfície plana. Um cardápio que é oferecido durante a alimentação, mas é construído em todos os momentos em que a criança e o adulto se relacionam.

Portanto, se a amamentação/alimentação está difícil, é fundamental não restringir a experiência alimentar ao peito/mamadeira ou ao prato como elementos isolados do ambiente da criança.

Imagem: Freepik.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

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