Para esta reflexão, recorro a um trecho do texto “Viver conectado, subjetividade no mundo contemporâneo”, escrito por Marielle Kellermann e publicado no livro Entre o like e o burnout: reflexões psicanalíticas (São Paulo, Blucher, 2023, p. 36):
“A utilização da tecnologia como ‘acompanhante’, como olhos e ouvidos, vem dar conta de uma solidão e um desamparo que são sintomáticos na sociedade contemporânea como esta está configurada, na qual as pessoas vivem mais sozinhas, têm famílias menores, e as comunidades são menos presentes enquanto grupo social significativo.”
Que a tecnologia nos acompanha nos dias de hoje, isso não é nenhuma novidade. A pergunta que me ocorre, a partir da colocação da autora, é a clássica: o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Ou, para uma vivente dos anos 1980: “Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?”. A tecnologia (de informação e comunicação – TV, celulares, redes sociais e afins) emplacou para “dar conta” da solidão e do desamparo decorrentes de uma nova configuração social, ou a nova configuração social exigiu a criação de tecnologias para “dar conta” da solidão e do desamparo por ela provocados?
Nessas perguntas o que mais importa não é a resposta, mas a possibilidade de perguntar. Então, sigo com uma que me inquieta faz algum tempo: o que vem primeiro, o desamparo do bebê ou o desamparo parental?
No nascimento de um bebê e nos cuidados que o acompanham nos primeiros meses de vida, o desamparo parental vai além do desamparo gerado pelo enquadre social: rede de apoio escassa ou inexistente, adultos próximos ausentes por estar fisicamente distantes ou trabalhar o dia todo, falta de espaços públicos para convívio com bebês, entre outros. Na chegada do bebê, o desamparo parental inclui o desamparo do bebê que a mãe/pai foi um dia, o qual é fundamental ser revivido para que eles possam se identificar com o bebê e, assim, compreender o que ele pode estar sentindo (fome, frio, cansaço, dor etc.) e ampará-lo. Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, chamou esse fenômeno de preocupação materna primária.
Embora o psicanalista refira-se em toda sua obra à mãe – principal responsável pelos cuidados com o bebê nos anos de suas publicações (1920-70), e atualmente –, a preocupação materna primária não é um instinto, nem exclusiva das mulheres. Ela se define por uma capacidade psíquica de recorrer aos nossos próprios recursos internos para acolher o desamparo do bebê. Tanto é que não podemos ensinar tais cuidados, por exemplo, se o choro for assim ou assado, faça isso ou aquilo; fazemos porque, na melhor das hipóteses, alguém fez algo semelhante conosco na mais tenra idade.
A preocupação materna primária “dura pouco tempo e diminui gradativamente conforme o bebê vai adquirindo a capacidade de lidar com as pequenas falhas ambientais resultantes do jogo presença-ausência materna, e na medida em que a mãe aos poucos vai retomando seu interesse por aquilo/aqueles que ela se ocupava antes da chegada do bebê”[1]. Ou seja, há uma dimensão de separação, de não-prolongamento entre mãe/pai e bebê.
Voltemos às tecnologias e aos gadgets (dispositivos eletrônicos portáteis) que se tornaram nossos acompanhantes e, ao mesmo tempo, um certo prolongamento de nosso corpo. Mesmo carregando uma bolsa enorme ou tendo outro lugar para colocá-los, o celular, tablet e cia. seguem em nossas mãos. Não nos separamos deles nem na hora de dormir!
Tenho a impressão de que a experiência de estarmos sempre acompanhados desses gadgets (em tempos remotos, do som da TV ou do rádio, do barulho das crianças brincando até tarde na rua, dos vizinhos discutindo, entre muitos outros burburinhos que uma hora cessavam) – e nunca estarmos sós – em alguma medida ecoa na relação pais e filhos, sobretudo bebês e crianças pequenas, como se pais e filhos fossem um o acompanhante e o prolongamento do outro. Estar conectado é imperativo de nosso tempo, o que traz uma série de coisas boas e outras nem tanto. O eco, me parece, mostra-se em certas práticas parentais ou mesmo em contratempos no desenvolvimento infantil. Cama compartilhada, amamentação em livre demanda e prolongada, fala e desfralde tardios são alguns exemplos e assuntos corriqueiros na clínica, não sem angústia para mães e pais e, por vezes, com prejuízos para as crianças.
Por mais que no início da vida compartilhar a cama, amamentar em livre demanda, falar pela criança, oferecer a fralda para ela fazer cocô, entre outros, sejam formas de acolhimento, quando esses acolhimentos começam a incomodar pais e/ou filhos (ou mesmo quem está ao redor), ou quando há algum atraso no desenvolvimento da criança, é hora de perguntar: o que vem (ou veio) primeiro, o desamparo do bebê/criança ou o desamparo parental?
Responder essa pergunta exige que façamos novas perguntas. O bebê compartilha a cama dos pais porque ele precisa ou porque os pais precisam dele por perto (nunca é demais lembrar que uma questão que sempre se coloca em relação a dormir junto ou separado é a morte do bebê, temida na consciência, mas sempre desejada inconscientemente em algum nível – “só morto para ele parar de chorar”). A amamentação em livre demanda atende às necessidades de quem? Quantas vezes o peito atende às necessidades parentais de “resolver logo” algum desconforto do bebê ou dos próprios pais (um berreiro no meio da rua)? O bebê não fala, mas se não o deixam falar, ele falará? Quem fala no lugar da criança assim o faz por qual motivo? Antecipa o que lhe é conveniente? Teme ouvir o que não quer? Por que manter as fraldas? Porque colocar as fraldas remete a um bebê e não a uma criança mais autônoma? Porque usar o vaso implica em “dispensar” o adulto, uma vez que é ela quem se senta e se levanta do vaso (ao passo que geralmente é o adulto quem lhe coloca as fraldas)?
Não pretendo, nem tenho como, esgotar essas perguntas, já que cada uma só pode ser lançada, e minimamente respondida, no contexto singular de cada pessoa e família. Julgar mães e pais por tais práticas ou contratempos é desconsiderar esse contexto, bem como o impacto das transformações sociais na subjetividade e, portanto, no exercício da parentalidade. Mães e pais estão cada vez mais sozinhos e desamparados do que nunca, o que não é sem efeito na vida deles, dos pequenos, da família e da sociedade. A conexão que não desconecta dos tempos de virtualização, atravessa nossas relações, incluindo a relação pais-filhos. O crescente número de manifestações que sugerem patologias neuropsicológicas, como se o sintoma fosse da criança e não na criança (ou seja, de âmbito meramente individual e não portando/denunciando aspectos culturais) ou que afetam o desenvolvimento na primeira infância têm em seu cerne a dificuldade em conectar (por exemplo, ter atenção, se concentrar) e desconectar – ou separar (por exemplo, não conseguir dormir, momento em que, mesmo estando fisicamente junto de alguém, ficamos sozinhos com nosso mundo interno – sonhos, monstros que habitam o quanto, pesadelos).
Se não escapamos das benesses e malefícios da virtualização, que todos nós possamos seguir com perguntas que incluam o desamparo parental e não apenas o desamparo do bebê/criança. Afinal, responder o que vem primeiro, o desamparo do bebê/criança ou o desamparo parental, é menos importante do que seguir acompanhando e, acima de tudo, amparando mães e pais para que eles possam encontrar maneiras suficientemente boas (conceito de Winnicott que pode ser compreendido aqui) de acompanhar e amparar seus filhos.
[1] Grinfeld, Patrícia L.P. Quem se agarra a quem, a quê e para quê?. Trabalho apresentado no III Encontro Internacional e X Encontro Nacional sobre o Bebê (ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê) em 02/11/2015, p. 4.
Imagem: Freepik.
Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.
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