Uma das definições de crise é “oportunidade de mudança”. Sem sombra de dúvidas, a crise gerada pela pandemia de Covid-19 tem nos exigido uma série de mudanças (e lutos), entre as quais a reinvenção de modos de trabalho e prestação de serviços. No caso da psicologia (e da psicanálise), uma das oportunidades trazidas por esta crise diz respeito à construção de técnicas apropriadas à psicoterapia online com crianças. Afinal, o que era impensável ou exceção se transformou em única possibilidade.

Desde de novembro/2018, quando a resolução 11/2018 do Conselho Federal de Psicologia entrou em vigor, regulamentando a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação, a psicoterapia online tornou-se uma intervenção possível aos profissionais cadastrados pelo e-psi. Antes desta resolução, os atendimentos psicológicos online estavam limitados a 20 sessões e era necessário que o profissional tivesse um site protocolado pelo Conselho.

Quanto ao atendimento de crianças (e adolescentes), o artigo 5º da atual resolução coloca que ele deve ocorrer “com o consentimento expresso de ao menos um dos responsáveis legais e mediante avaliação de viabilidade técnica” por parte do profissional para a realização do serviço. É justamente sobre a (in)viabilidade técnica que recai a maior parte das objeções quanto à realização da psicoterapia online com crianças – afinal, como estar junto, emprestar o corpo, brincar, sem um encontro presencial?

No meio psi, temos notícias de que muitas crianças tiveram suas psicoterapias interrompidas pelo profissional no início do período de isolamento social em função da – suposta – inviabilidade técnica (não incluo aqui as interrupções pelos pais ou instituições, embora estas também tenham suas consequências e mereçam reflexão). Num momento tão delicado quanto são as situações de crise, em que a angústia eclode ou se acentua, a necessidade do trabalho psicoterápico é ainda maior. Pelo cenário que se desenha a cada dia, às crianças que já vinham em processo psicoterapêutico, somam-se aquelas que precisarão iniciar ou retomar a psicoterapia devido ao sofrimento psíquico. Afastadas de vínculos importantes de um lado, e/ou sobrecarregadas de tensões internas ou externas de outro, torna-se, mais do que nunca, crucial pensarmos a clínica online com crianças. Do contrário, a crise, que vem escancarando no macro e micro contextos questões até então ignoradas, deixa de ser uma oportunidade de mudança (cuidado), ficando apenas com sua faceta de “um tempo que para”, de uma vida sem movimento, portanto, em risco. E os riscos psíquicos da infância, sabemos, deixam marcas perenes.

Para pensar a clínica online com crianças, é importante considerarmos que brincar é muito mais do que uma simples brincadeira. Segundo Winnicott, brincar tem a função constituinte de integrar partes dissociadas da natureza humana: dentro e fora, realidade externa e interna, razão e afeto. Não sendo nem da ordem da realidade interna, nem da realidade externa, o brincar se dá entre essas duas realidades, numa zona intermediária denominada espaço potencial.

A psicoterapia, nas palavras de Winnicott, “se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é.” (O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975, p. 59). Assim sendo, não precisamos de um espaço físico-presencial (o consultório) para que a psicoterapia aconteça, mas de espaços transicionais, que permitam o trânsito entre mundo interno e mundo externo.

Observamos (coloco no plural já que minhas reflexões são alimentadas também pelas contribuições de outros profissionais que participam das supervisões que a Ninguém Cresce Sozinho realiza em parceria com a psicanalista Renate Meyer Sanches) que as crianças cujo brincar não está comprometido têm aproveitado, e muito, da psicoterapia online. São crianças que vinham de um trabalho analítico presencial, com a transicionalidade já construída na relação com o terapeuta, mas que, em função da pandemia, tiveram que migrar para o ambiente online. Nesses casos, o brincar se dá desde a circulação doméstica – mostrando a si mesmo através novos elementos (brinquedos, animais de estimação, cantos da casa, etc.) – até adaptações ou invenções de modos de estar junto, separados por uma tela. Aqui, brincar online não tem a ver com jogos eletrônicos ou afins, mas com a possibilidade de propiciar o surgimento de um espaço transicional.  Friso junto separados, ainda que não componham na frase acima uma expressão, porque juntos, porém, separados, faz o entre do espaço potencial.

Nosso maior desafio na clínica online versa sobre as crianças que têm o brincar comprometido. Nesses casos, a participação da família torna-se imprescindível, uma vez que precisamos dela para promover/encontrar situações ou objetos que possam criar transicionalidade. Desse modo, pode ser que as sessões tenham que acontecer com a criança e os pais, a criança e um dos pais, a criança e um irmão ou com toda a família. Se, por exemplo, apostamos na feitura de massinha com farinha como uma possibilidade de criação da transicionalidade, o terapeuta não precisa fazer massinha do outro lado da tela, como provavelmente aconteceria no espaço físico-presencial com a criança. Neste novo setting, há também novos manejos, como o terapeuta observar e intervir se e quando necessário. Com as crianças que têm maior capacidade de brincar, o manejo pode ser fazer a massinha junto, cada um de um lado da tela.

Uma vez que “as crianças brincam com mais facilidade quando a outra pessoa pode e está livre para ser brincalhona” (Winnicott, D.W. O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975, p. 67), seja o terapeuta ou os pares da criança (mãe, pai, irmãos ou até mesmo um animal de estimação), precisamos, mais do que nunca, ser criativos!

A clínica online com crianças nos convoca a adaptações das técnicas construídas nas e para as intervenções presenciais. Como sempre fizeram, são as crianças quem irão nos ensinar as novas técnicas, desde que encontrem do outro lado da tela alguém disponível oferecer o que elas precisam, no momento em que elas precisam. Como a mãe (todos que se ocupam dos cuidados e funções parentais), a psicoterapia não precisa ser perfeita; precisa ser suficientemente boa.

Imagem: Nadine DoerléPixabay.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

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