Para existir um ovo (ou zigoto) é preciso juntar um óvulo e um espermatozoide. A maneira como ambos se juntam nem sempre é natural, pela via da relação sexual entre uma pessoa que porta óvulos e outra que produz esperma (ou sêmen), líquido que contém e transporta os espermatozoides até o óvulo. A concepção também pode acontecer por meio de reprodução caseira (o sêmen é colocado por via vaginal com seringa, sonda ou similar) ou reprodução assistida pela medicina, a qual se utiliza de diferentes técnicas de acordo com a condição biológica da(s) pessoa(s) que quer(em) ou “precisa(m)” engravidar, ter um(a) filho(a) e/ou ser mãe/pai – fatores que nem sempre compõem o mesmo “combo”.

Do ponto de vista da embriologia, depois de 8 semanas, o embrião vira feto e assim o é nomeado até o fim da gestação. Então, por que dizemos que nós ou alguém tem um bebê na barriga, ou que nós ou alguém espera um bebê? Porque no psiquismo dessas pessoas existe um bebê. A existência, aqui, não é de um punhado de células, mas de um bebê imaginado e investido afetivamente. Isso é o que faz diferença no conceito e na relação que cada um estabelece com o embrião ou feto. Isso é o que humaniza, transforma em humano, o que é orgânico. Portanto, é deste ponto que, no meu entendimento, deveríamos partir para qualquer debate ou decisão sobre seguir ou interromper uma gravidez. O que cada pessoa carrega em seu ventre pode, ou não, ser um bebê.

Annie Ernaux, em O acontecimento (Fósforo, 2020), e mais tarde, Colombe Shneck, em Dezessete anos (Relicário, 2023), narram “o acontecimento” que marcou a vida de cada uma: um aborto. O da primeira realizado clandestinamente, de modo pouco seguro e bastante solitário, na França dos anos 1964: “Milhares de moças subiram uma escada, bateram numa porta atrás da qual havia uma mulher de quem nada sabiam, a quem confiariam seu sexo e seu ventre. E essa mulher, a única pessoa capaz de fazer o sofrimento passar, abria a porta, de avental e chinelo de estampa de bolinhas, um pano de prato nas mãos: ‘Pois não, senhorita?’.” (p.45-46). O da segunda, feito no mesmo país 20 anos depois, quando a interrupção voluntária da gravidez já era permitida e, portanto, “o acontecimento” podia ser vivido de maneira segura e menos solitária: “Graças à lei, sua ausência [do feto] não é o resultado de horas cruéis de maus-tratos, sangue, medo, humilhação e desprezo.” (p. 72).

O que ambas as mulheres, mães e escritoras colocam no final de suas narrativas – a mais jovem, mobilizada pelo livro da mais velha (prêmio Nobel de Literatura em 2022) –, é que o aborto realizado em suas juventudes as permitiu desejar a maternidade em momento posterior. Conta Ernaux: “Sei que eu precisava dessa provação e desse sacrifício para desejar ter filhos. Para aceitar essa violência da reprodução no meu corpo e me tornar, por minha vez, lugar de passagem das gerações.” (p.70). Sneck, precisa desta fala de Ernaux para entender que: “Você [“o ausente”, “bebê do inverno”, que ela se convenceu ser “um menino”] se sacrificou por eles [“o irmão mais novo e a irmãzinha”].” (p.72).

As narrativas terminam. Elas são precisas, necessárias e cirúrgicas, para a elaboração de uma experiência que não termina com o término do concepto (produto da concepção). Diz Ernaux: “Terminei de pôr em palavras isso que para mim se revela uma experiência humana total, da vida e da morte, do tempo, da moral e do interdito, da lei, uma experiência vivida de um extremo a outro pelo corpo.” (p.71). Mais uma vez a voz de Annie ressoa na conterrânea, que, a partir das palavras acima, escreve: “Posso, então, agora, escrever. Sua ausência me acompanha há trinta anos. [parágrafo] Sua ausência me permitiu ser a mulher livre que sou hoje.” (p.73).

Agora as palavras são minhas. Entendo que o aborto só foi possível para ambas porque naquele momento cada uma carregava no próprio útero um concepto, não um bebê. Para que o concepto se transforme em bebê é preciso algum investimento libidinal. Elas não fizeram (optaram por não fazer) esse investimento.

Essa ideia, a meu ver, se costura com uma das questões trazidas por Mieko Kawakami em seu extraordinário Peitos e ovos (Intrínseca, 2023): como se sentem as pessoas concebidas por IAD (inseminação com sêmen de doador)?

A ficção, que no início aponta para uma amargura – “Ele [um homem que fora concebido por IAD] falou do sofrimento que muitas pessoas nascidas por IAD continuavam carregando: desconfiança e ira que aumentavam cada vez mais depois de saberem a verdade, depois de se darem conta de que foram enganadas; sensação de que não nasceram de pessoas, mas de alguma coisa.” (p.254) –, segue na direção do que os romances da vida real revelam na clínica: sêmen não faz pai, como óvulo não faz mãe e ovo não faz filho. É a trama simbólica que constrói a parentalidade e o sujeito. Na entrega voluntária para adoção, por exemplo, o bebê entregue aos cuidados do Estado é, para quem faz a entrega, um humano, mas não um filho. Já quem o descarta na lata do lixo, não considera aquela massa orgânica nem mesmo um humano.

Retomemos à Kawakami. É a falta de história que causa amargura: “Praticamente nenhum pai ou nenhuma mãe explicavam a verdadeira origem ao filho, e, na maioria dos casos, a criança ficava sabendo a verdade [sobre a IAD] por acaso.” (p.253). Isso se estende à adoção e a tantas outras histórias sobre a verdadeira origem de um filho (adultério, incesto, estupro, vingança, “camisinha furada” e tantas outras, nem sempre permeadas por tragédias). Contemos as verdadeiras histórias, como lindamente contou Dona Erani à filha Djamila quando esta tinha dezesseis anos: “‘Quando eu engravidei de você, seus irmãos eram todos bebês, sua irmã tinha meses ainda. Eu fiquei desesperada, como ia ser cuidar de quatro filhos numa casa que quando chovia até cobra entrava? Como seria se seu pai não conseguisse o registro de estivador, a tão sonhada carteira preta? Passaríamos necessidade? Eu tive muito medo e resolvi procurar um curandeiro na vila, que oferecia chá abortivos e simpatias para que a gente interrompesse a gravidez. (…)’ [parágrafo] ‘Filha, passei sua gravidez toda com medo, não ia me perdoar se você nascesse com algum problema que eu poderia ter causado. (…) Eu te peço perdão, filha’.” (p. 59-60). Ao que a filha responde (na página 60): “Não senti raiva, mágoa, nada. Os segundos que antecederam a quebra do meu silêncio devem ter sido assustadores. Com calma, respondi que o importante era que ela me amava, que eu entendia que devia ser difícil engravidar de mais uma criança quando meu pai passava a maior parte do tempo trabalhando. Que estava absolutamente tudo bem.” (Djamila Ribeiro em Cartas para minha avó, Companhia das Letras, 2021).

Concluo, portanto, que o sentido dado ao orgânico é fundamental para entender e possibilitar o aborto, a doação de gametas (ou embriões) e o surgimento de um bebê; e que a história, quando verdadeira, torna-se mais doce do que amarga.

Nota: Este texto foi escrito a partir de reflexões que teci cruzando discussões trazidas nos encontros de setembro e novembro de 2023 do Clube de Leitura da Ninguém Cresce Sozinho, e da leitura do livro que nos acompanhará em abril de 2024. Agradeço às contribuições de todos os participantes e da Tatiana Machado, coordenadora do Clube.

Imagem: Freepik.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

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