Suponho que ao se depararem com o título deste encontro[1]Agressividade: qual o limite? –, a primeira ideia que lhes ocorreu tenha sido que existe um limite para a agressividade; afinal, impulsos-agressivos-sem-limites podem provocar dores, danos ou destruições e desorganizar tanto o agressor quanto quem é agredido (quando não todo o ambiente ao redor), já que ambos acabam mergulhados em muita angústia e culpa – “o que eu fiz (ou deixei de fazer) para provocar isso tudo?”.

Embora conhecido por todos nós, o aspecto negativo da agressividade não é sua única faceta. A agressividade é vital, construtiva e constitutiva da subjetividade. Ela nos move em direção ao mundo. Sem ela, não comemos, não corremos, não parimos, não buscamos um novo emprego, não lutamos por condições melhores.  Sem ela, o amontoadinho de carne e ossos chamado bebê não “vira gente”. Graças à agressividade a criança vai em busca daquilo que a interessa, morde alimentos, chuta bola, soca e espreme massinha, esmaga formiga, se delicia com histórias de lobo mau e outros vilões, faz e derruba castelos de areia e torres de blocos, brinca de destruir e matar – para não precisar fazer isso fora do faz de conta.

Winnicott, pediatra e psicanalista inglês que entre os anos de 1920-70 construiu sua teoria sobre o amadurecimento emocional, nos ensinou que a motilidade inicial do bebê é precursora da agressividade. Batendo, chutando, mordendo, primeiro involuntária e acidentalmente, o bebê vai descobrindo, por meio do contato com os objetos (pessoas e coisas) que ele encontra em seu caminho, o que é “não-eu”. Somente num segundo momento, quando ele percebe que suas movimentações propiciam algum prazer e ganham sentido, é que seus movimentos se tornam deliberados.

Até os 6 meses de idade aproximadamente, o bebê não sabe que ele e esses objetos são distintos. A diferenciação entre “não-eu” e “eu” é gradual e se estende até os 2-3 anos – período, conhecido como terrible two, no qual a criança briga, se opõe, diz “não” até quando quer dizer “sim” e “te odeio” para figuras que ama como formas dela “afirmar quem ela é e se separar do outro”[2], mas também de manifestar a frustração de não poder ter tudo, como, ilusoriamente, ela imaginava no começo da vida. Esta fase é “terrível” – e ao mesmo tempo encantadora – porque se separar nunca é tarefa fácil, nem para as crianças, nem para os adultos, sobretudo praqueles que, com o amadurecimento emocional da criança, temem perder algo que lhes é muito importante – por exemplo, o lado gostoso do “tudo junto e misturado” do primeiro ano de vida do bebê, o controle sobre a criança, a sua imprescindibilidade a ela, entre outros. Daí a importância de que cada um que se relaciona intimamente com a criança possa se perguntar o que perde – ou imagina, teme perder – com o des-envolvimento dela. E qual o encanto que acompanha isso tudo? O surgimento de um ser humano que se reconhece como uma unidade. Não à toa, é nessa mesma fase que as crianças passam a se referir a si mesmas em primeira pessoa.

Na fase dos 2-3 anos, a que criança bate, chuta, morde, empurra, cospe etc. expressa, por meio desses comportamentos, afetos e vivências que ainda são difíceis de compreender ou lidar, como raiva, medo, cansaço, fome, entre outros (em alguns casos essas expressões podem revelar um sofrimento psíquico, exigindo intervenção profissional). O grande enrosco dessas situações é que nem sempre a criança desta faixa etária entende que seu ato pode machucar alguém, física ou emocionalmente, ou a si mesma, justamente porque ela ainda não tem totalmente discernido “eu” de “não-eu”. Mesmo nós, adultos, algumas vezes também não temos esta clareza, o que nos leva a agir como uma criança pequena: xingamos, gritamos, jogamos coisas longe na tentativa de expressar nossas vontades, pensamentos, sentimentos e frustrações.

Porém, na relação com a criança, somos (e precisamos ser) o adulto, o que significa que quando a criança não consegue compreender o limite eu-outro ou lidar com seus impulsos agressivos somos nós que precisamos marcar esse limite e dar sentido às suas excitações, ajudando-a a diferenciar um ato intencional de um não-intencional e a entender as consequências de alguns desses atos, o que é permitido ou não, o que pode machucar ou não, o que incomoda o outro e assim por diante. Somos nós que precisamos ajudar a criança a dar um destino socialmente aceito a seus impulsos agressivos até que ela consiga assumir suas ações como sendo suas e, assim, responsabilizar-se por elas. Somos nós que precisamos sobreviver aos impulsos agressivos da criança, sem que nos sintamos destruídos. É nossa integridade que permite colocar o limite necessário à agressão infantil, impedindo que a criança, à mercê de sua própria agressividade, se transforme numa pequena tirana que tenta ocupar o lugar de autoridade que ela percebe estar desocupado.

[1] Este texto foi apresentado na abertura da roda de conversas “Agressividade: qual o limite?” realizada no dia 14/11/2023 na Manduí Educação Infantil. Agradeço à Júlia Konigsberger e à Thais Abrahão pelo convite e aos participantes do encontro pelas trocas.

[2] Grinfeld, Patrícia L. P. e Imanishi, Helena A. “Limites: sua importância para o desenvolvimento infantil”, Episódio 1. Disponível em https://bit.ly/trilhasnohotmart.

Imagem: Freepik.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

Para mais informações sobre agressividade e limites, conheça a trilha Limites: sua importância para o desenvolvimento infantil