Em 1905 Sigmund Freud, pai da psicanálise, publicou um dos textos mais importantes de sua obra, o Três ensaios sobre a sexualidade infantil. Nele, destacou, entre outros pontos, a existência da sexualidade infantil – experiências sexuais vividas na infância que nos acompanham durante toda a vida, mesmo que não nos recordemos delas.

Quase 120 anos depois, manifestações da sexualidade na infância ainda provocam incômodos, geralmente relacionados a aspectos (conscientes ou não) da nossa própria sexualidade, e mal-entendidos decorrentes predominantemente de uma visão que parte da sexualidade do adulto para compreender a sexualidade da criança.

Conforme descrito pela Organização Mundial da Saúde, “sexualidade é um aspecto central do ser humano ao longo da vida; ela engloba sexo, identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é vivida e expressada por meio de pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Embora a sexualidade possa incluir todas essas dimensões, nem sempre todas elas são vividas ou expressas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, jurídicos, históricos, religiosos e espirituais.” (p. 15). Assim sendo, como nos mostrou Freud, a sexualidade não se restringe ao ato sexual, mas é uma energia vital, expressão da afetividade e do prazer. Não por acaso, usamos palavras como tesão, caralho, para mencionar uma gama de coisas que excitam, entusiasmam.

Embora a sexualidade se expresse desde o início da vida, há uma diferença crucial entre a sexualidade do adulto e a sexualidade da criança: a primeira pode englobar erotização e ato sexual; a segunda, não.

Conceitualmente é fácil fazer esta distinção. Porém, quando uma criança se deita sobre o corpo de outra criança simulando movimentos que sugerem uma relação sexual, mostra seu genital para outra criança, explora o genital de outra criança (inclusive com a boca), ficamos em

dúvida se isso é abuso sexual (e se poderá causar algum trauma à criança). Ou, porque as crianças costumam repetir na brincadeira experiências vividas (mas não só, como é o caso das brincadeiras em que as crianças experimentam ser o que não são – “faz de conta que…”), ficamos em dúvida se a criança teve acesso a algum conteúdo erótico e/ou foi/é vítima de abuso sexual em outro contexto.

O grifo destacando “outra criança” é fundamental para discriminar brincadeira de abuso sexual. Abuso sexual é “qualquer forma de contato e interação sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente em que o adulto, que possui uma posição de autoridade ou poder, utiliza-se dessa condição [autoritarismo] para sua própria estimulação sexual, para estimulação da criança ou adolescente ou, ainda, de terceiro” (Guia escolar: identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, p.64) em prol de sua satisfação.

As brincadeiras sexuais em que as crianças envolvidas escolhem fazer parte da brincadeira, sem ser forçadas por outra ou outras crianças, têm seu ápice entre os 4 e 6 anos. Isso não significa que crianças fora desta faixa etária não se interessem pelo corpo alheio ou brinquem/queiram brincar com o genital de outras crianças. Aqui, a diferença de idade entre as crianças costuma inquietar os adultos. Uma criança mais velha que brinca sexualmente com uma criança mais nova, está abusando da menor?

Novamente, se há consentimento entre as crianças envolvidas, não é abuso. É gostoso e, na maioria das vezes, as crianças sabem que esse prazer não deve ser experimentado publicamente. Por isso, fecham a porta, se escondem atrás do sofá, debaixo da mesa, dentro de cabaninhas e respondem, rapidamente “Nada!” quando são pegas no flagra e indagadas “O que vocês estão fazendo aí?”.

Como em qualquer outra brincadeira, na brincadeira sexual a criança investiga, experimenta, testa suas hipóteses e limites. Entretanto, na brincadeira sexual a exploração inclui as chamadas partes íntimas, que além dos genitais e ânus englobam outras partes do corpo com orifícios e a própria pele, regiões que propiciam sensações, muitas vezes prazerosas, quando tocadas, cheiradas, lambidas etc. Essa exploração possibilita à criança melhor conhecer o próprio corpo. Portanto, são explorações que, enquanto brincadeira [consentida], não devem ser vigiadas e punidas, proibidas, reprimidas (não à toa as crianças dizem “Nada!”); se o são, cabe a pergunta: o que dessas brincadeiras interessa ou preocupa o adulto?  Diante dessas explorações é comum brotar nos adultos, especialmente mães e pais, um incômodo que pode ser a verdadeira causa do vigiar, punir, proibir e reprimir as brincadeiras sexuais infantis: ter eles mesmo sofrido abuso sexual e/ou perceber o corpo do filho ou filha pertencendo à própria criança e não mais como “extensão” do corpo parental (corpo não é apenas feito de “carne e osso”, mas também de pensamentos, sentimentos, desejos).

Se uma criança, independentemente da idade, impõe com ameaças, chantagens, gratificações, força física etc., qualquer brincadeira (não apenas uma brincadeira sexual) a outra criança, precisamos estar atentos aos dois lados: o de quem impõe e o de quem se submete. As relações em que um impõe e o outro se submete são relações abusivas, o que torna extremamente fértil o terreno para o abuso sexual acontecer.

Ainda em relação à diferença de idade, faço uma ressalva quanto à puberdade. Em função do amadurecimento dos órgãos sexuais, há púberes que podem querer exibir as mudanças de seu corpo ou desejar o corpo do outro para obter prazer. Ou, crianças menores que se encantam com a transformação do corpo das mais velhas, querendo “checar com seu próprio corpo” as mudanças que observa. Em qualquer dessas situações é importante conversar com as crianças envolvidas no jogo sexual sinalizando que essas brincadeiras não poderão ocorrer entre elas já que os interesses em relação aos corpos agora são distintos.

Como as brincadeiras sexuais na infância têm caráter investigativo, elas costumam ser breves na medida em que a curiosidade é saciada. No entanto, quando uma criança é demasiadamente atraída pelos jogos sexuais ou quando eles acontecem repetidamente, é preciso intervir para buscar a origem dessa atração e cuidar caso haja alguma forma de sofrimento psíquico e/ou violência sexual comunicada por meio do brincar.

Imagem: Freepik.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

Para mais reflexões sobre este tema, participe da roda de conversas sexualidade na infância: do esperado a possíveis riscos, ou agende uma consulta de orientação a pais.