Amamentação e trabalho é tema comum a todas as pessoas que decidem amamentar – afinal, a amamentação inclui, no mínimo, dois tipos de trabalho: o trabalho psíquico de disponibilidade ao bebê (que é o que possibilita a construção do vínculo) e o trabalho do ato em si.
No entrelaçamento desses dois trabalhos, que não cessam durante a amamentação ou noutros cuidados com o bebê, soma-se, mais cedo ou mais tarde, ao menos para uma parte das pessoas que amamentam, outro trabalho – este socialmente reconhecido, mesmo quando pouco valorizado: o trabalho profissional.
No contexto laboral, a continuidade da amamentação dependerá, além do desejo de quem amamenta, do ambiente no qual a mãe (ou o pai, no caso de pai trans) e o bebê (ou os bebês, na gemelaridade) estão inseridos, e da experiência de amamentação e de separação de cada um dos envolvidos.
Para ilustrar a diferença ambiental no suporte à amamentação às mães que exercem uma profissão, recorro a trechos da pesquisa da antropóloga americana Alma Gottlieb (2012) sobre a vida dos bebês do povo Beng, na Costa do Marfim (oeste africano), realizada na década de 1990, e do conto “A teta racional” escrito por Giovana Madalosso (2016).
O apoio na cultura Beng:
“Pelos primeiros dois ou três meses depois do nascimento, o ideal é que a nova mãe relaxe enquanto a própria mãe e outras parentes a mimam. Nesses primeiros meses, sua principal tarefa é amamentar e banhar seu novo bebê [o banho tem um sentido muito especial: proteger o bebê de sua vulnerabilidade inicial]. As mulheres mais velhas recomendam que as novas mães fiquem em casa todos os três meses para recuperar-se totalmente do parto. Atualmente, entretanto, as mulheres não raro voltam depressa para seus cultivos depois de somente dois meses. Suas parentes mais velhas podem preveni-las: ‘Comece devagar – no início somente um ou dois dias, meio período, por semana em seus campos, depois três ou quatro dias, meio período. Se você volta a trabalhar em tempo integral muito cedo, não se recuperará do parto’.
Não importa a hora em que a nova mãe retorna ao trabalho, seus dias serão muito mais fáceis se ela encontrar para si uma len kuli[1] – [literalmente] uma carregadora de bebê – para cuidar de seu filho quando estiver ocupada. Enquanto a mãe está trabalhando, a babá [uma filha mais velha, uma irmã mais nova, uma sobrinha ou, quando só há meninos na família ou as irmãs e sobrinhas são muito jovens ou muito velhas, a mãe Beng recorre a meninas de fora da família ou da aldeia] pode cuidar do bebê nos campos, e a mãe só precisará parar de trabalhar para amamentar.” (p.211-212)
“(…) ter uma len kuli regular – ou um grupo de várias delas em potencial para esquematizar [o que é uma prática bastante comum, já que os bebês e crianças são cuidados por toda aldeia, exceto na amamentação e nos banho, tarefas maternas] – não é um luxo, mas uma necessidade para a maioria das mães Beng, principalmente aquelas que já têm uma ou duas crianças sob seus cuidados.” (p.213)
Fragmento de um (des)apoio em nossa cultura:
“Estou trancada no banheiro da agência ordenhando. (…) Faço isso quatro vezes ao dia, cinco vezes por semana. Depois guardo a mamadeira na geladeira da copa e, à noite, volto para a casa carregando os frascos a tiracolo, como um entregador de leite. No dia seguinte, a babá serve tudo para o meu bebê.
O meu chefe bate na porta e pergunta se vou demorar. Mais uns dez minutos, eu digo. Jogo a cabeça para trás, fecho os olhos e tento mentalizar coisas que despertem meu amor, porque uma amiga me disse que o amor estimula a produção de ocitocina e isso faz o leite descer mais rápido. (…) e então o babaca do meu chefe bate na porta de novo pedindo que, quando eu sair do banheiro, vá direto para a sua sala.” (p.84-85)
“Meu mamilo brocha. Juro por Deus, ele brocha. O bico, que estava duro, amolece e se retrai, deixando clara sua recusa de trabalhar[2] em tão precárias condições.” (p.85)
“No caminho para a sala do meu chefe, paro na copa e guardo o leite na geladeira. Depois olho no relógio: sete e meia da noite, hora de eu ir. ” (p.85-86)
Estes dois retratos de como a amamentação acontece para a mãe trabalhadora (estudante ou que se separa do bebê por certo período no dia) são bastante discrepantes.
Enquanto as mães Beng são genuinamente apoiadas pela comunidade para que fiquem em casa nos três primeiros meses após o nascimento do bebê, em termos legais, nem todas as mães brasileiras recebem esse suporte. Segundo dados do 3º trimestre de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, 65% das mulheres ocupadas (o que corresponde a 52% do total das mulheres com 14 anos ou mais) contribuíam com a Previdência Social. Ou seja, 35% das mulheres que exercem alguma atividade profissional não têm direito à licença maternidade de 120 dias. Por consequência, quando se tornam mães, estão sujeitas a voltar a trabalhar dentro de um período menor do que o assegurado pela Previdência Social – que já é menor do que a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), endossada pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2015), de amamentação exclusiva nos primeiros seis meses de vida do bebê. Felizmente, apesar de lentos passos, já existem empregadores ampliando a licença maternidade para 180 dias (como é o caso de empresas que aderem ao Programa Empresa Cidadã) ou implementando a licença parental, que concede a mães e pais o mesmo tempo de afastamento do trabalho na chegada do bebê. Afinal, o afastamento do trabalho neste momento não serve apenas para a recuperação do parto, mas também para o estabelecimento das relações de cuidado com o bebê ou a criança (na adoção) e a construção do vínculo e da parentalidade.
Mesmo que tenha direito à licença, diferentemente das mães Beng que são aconselhadas a retornar gradualmente à sua ocupação profissional, as brasileiras que têm carteira assinada (48,8% das ocupadas de acordo com o DIEESE, 2023) em geral retornam às atividades profissionais “de um dia para o outro”, cabendo cuidar da separação do bebê de forma paulatina enquanto ainda estão em licença para que a separação no retorno ao trabalho não seja vivida de forma abrupta e, por consequência, psiquicamente desorganizadora para a mãe e para o bebê.
A diferença cultural na compreensão da importância da amamentação reflete na maneira como amamentação se dá enquanto a mãe trabalha. Se de um lado as Beng seguem amamentando durante o trabalho, de outro, as brasileiras, mesmo que tenham assegurado o direito de dois descansos de meia hora cada no período de trabalho até o bebê completar 6 meses (artigo 396 da Consolidação das Leis do Trabalho – Brasil, 1943), raramente conseguem aleitar seu bebê no local de trabalho, especialmente nos grandes centros urbanos (cuja realidade é muito diferente de 80 anos atrás, quando a CLT foi decretada), e nas situações de inflexibilidade no trabalho. Nessas situações, a ordenha do leite acaba sendo o caminho para a continuidade da amamentação; entretanto, tal como acontece com a personagem de Madalosso, muitas vezes em condições precárias, tanto do ponto de vista das instalações, quanto do suporte emocional necessário para este feito – um suporte, podemos dizer, minimamente amoroso e empático por parte do empregador, da chefia e dos colegas de trabalho, e responsável por parte do Estado e sociedade.
Na medida em que a amamentação oferece benefícios à saúde da mãe e do bebê (Brasil, 2015) e impacta a economia – não amamentar está associado a perdas econômicas de cerca de US$ 302 bilhões anuais ou 0,49% da renda bruta mundial[3] (Rollins et al., 2016) – precisamos, coletivamente, proteger, promover e apoiar o aleitamento materno (ou melhor, humano, uma vez que pais trans amamentam) também no retorno ao trabalho, quando a maioria dos bebês ainda estão (ou deveriam estar) no aleitamento exclusivo.
Se a amamentação e sua continuidade no retorno ao trabalho dependem do empenho coletivo, quando o coletivo se isenta da parte que lhe cabe, resta à mãe – solitária e geralmente acompanhada de algum nível de sofrimento psíquico – ter que optar pela amamentação ou pelo trabalho, ou conciliá-los, como se essa tarefa fosse apenas dela.
Ora, amamentar e exercer uma profissão não é uma questão de conciliação. Como apontado no artigo “Muito além da conciliação” (Machado e Grinfeld, 2021), conciliar significa buscar harmonia entre aspectos incompatíveis e, tal qual mostram as Beng e outras mães com experiências positivas de amamentação e atividade profissional, amamentar só é incompatível com o trabalho se as condições ambientais desconsideram as necessidades de quem amamenta e de quem é amamentado – entre elas, que a separação entre a mãe e o bebê deve ser vivida como um processo gradual, ainda na presença materna, sobretudo quando a mãe é a principal referência para o bebê.
Considerar esta e outras necessidades é o que possibilita que amamentação e trabalho não sejam antagônicos. É o que possibilita que a amamentação continue a ser uma experiência prazerosa para a mãe e para o bebê. Portanto, uma experiência subjetivante, que nutre muito além do leite.
[1] A grafia correta não é essa, pois não consegui reproduzi-la com os símbolos disponíveis no Word. O “n” de len tem a segunda perna mais longa (dando o som de ng) e acima da letra “u”, em kuli, há um acento que lembra um sorriso/meia lua.
[2] O grifo é meu, apontando outro trabalho relacionado à amamentação, a ordenha do leite.
[3] PIB global.
Referências bibliográficas
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: aleitamento materno e alimentação complementar / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2ª edição, 2015.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos). Infográfico Mulheres 2023: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, 2023.
GOTTLIEB, Alma. Tudo começa na outra vida: a cultura dos recém-nascidos no oeste da África; tradução [de] Mara Sobreira. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2012.
GRINFELD, Patrícia L. P. e MACHADO, Tatiana. Muito além de conciliação. In: Maternidade e Trabalho. Revista E (SESC-SP), dezembro 2021, nº 6, ano 28, p.60-61.
MADALOSSO, Giovana. A teta racional. In: A teta racional. São Paulo: Grua, 2016, p. 84-86.
ROLLINS, Nigel C; BHANDARI Nita; HAJEEBHOY Nemat; HORTON Susan; LUTTER Chessa K; MARTINES Jose; et al. Why invest, and what it will take to improve breastfeeding practices? The Lancet, janeiro 2016, volume 387, p.491-504.
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Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.