Com alguma frequência escutamos, em referência ao desenvolvimento infantil, que “cada criança tem seu tempo”. Embora a singularidade precise ser considerada, não é incomum essa fala ter como pano de fundo a ideia de desenvolvimento como algo natural: basta nascer, estar no mundo, que, mais cedo ou mais tarde, competências são adquiridas. Exemplos ilustrativos dessa concepção são diversos. Contudo, para esta reflexão, tomo a emblemática e equivocada visão de não haver motivos para se interrogar quando uma criança não desfralda por volta do terceiro ano de vida, uma vez que “ninguém entra na vida adulta usando fraldas”. Será? Eu mesma já acompanhei pré-adolescente que não apresentava nenhuma patologia orgânica, mas tinha, como única forma de evacuação, escapes contínuos de fezes que revelavam uma importante perturbação de ordem pessoal e familiar, impedindo-o de deixar as fraldas.

O desenvolvimento infantil não é automático, como pode parecer, mas resultante de um grande e intenso trabalho, realizado pela criança e seu ambiente, na intersecção entre o que Lydia Coriat e Alfredo Jerusalinky denominam aspectos estruturais e aspectos instrumentais do desenvolvimento infantil (“Aspectos Estruturais e Instrumentais do Desenvolvimento Infantil”. In: Escritos da Criança Nº 4. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 1996). Os aspectos estruturais incluem o que constitui o sujeito: a estrutura orgânica, dada desde o nascimento, e a estrutura psíquica, construída a partir da significação dos acontecimentos entre o bebê e seu ambiente. Os aspectos instrumentais abarcam a psicomotricidade, linguagem, aprendizagem, hábitos, brincar e processos de socialização, ferramentas que permitem realizar as demandas do sujeito através da expressão, experimentação, trocas, regulações, entendimentos, etc.

Feita essa breve colocação, retomemos ao desfralde. Para que ele ocorra, é necessário um aparelho biológico que tenha a capacidade neurofisiológica de controlar os músculos esfincterianos, o que começa a acontecer, para as crianças que não apresentam nenhuma limitação no sistema nervoso central ou no aparelho digestivo, por volta do 20º mês de vida. Como tal capacidade se dá concomitante à aquisição de certas habilidades motoras (como ficar de cócoras, cruzar as pernas, subir e descer escadas), por vezes é dado que ter tais habilidades equivale à criança estar “pronta” para desfraldar. Se assim o fosse, bastaria o amadurecimento neurofisiológico para as crianças espontaneamente deixarem as fraldas.

Lembremos da estrutura psíquica da criança. Quem é e como está a criança, consigo mesma e na relação com o ambiente? Quais sentidos foram dados nas e às trocas de fraldas, xixis e cocôs produzidos desde o nascimento (alguns, até intra-útero – o mecônio), que vazaram, que aconteceram no banho, que tiveram odores variados. Ao banheiro, penico, vaso sanitário, à própria fralda e higienização da criança, e tantos outros acontecimentos que permearam e permeiam a relação da criança com a fralda, com seus excrementos, seus cuidadores e todo seu entorno.

Ainda que incluamos as condições psíquicas às orgânicas, isso não é suficiente para o desfralde acontecer. É necessário que outros elementos componham a cena, inclusive nos casos em que a criança deixa as fraldas num tempo muito breve ou sem percalços. Estes elementos compreendem os aspectos instrumentais. A criança sinaliza, através de gestos ou fala, que quer fazer, fez ou está fazendo xixi ou cocô? Como sinaliza? Como reage às intervenções do adulto a esses sinais? Se mostra interessada quando alguém faz uso do vaso sanitário? Brinca com bonecos que eles usam o peniquinho? Se interessa por histórias sobre o tema? Se incomoda com o uso da fralda? Apresenta mudança postural no momento de troca das fraldas?

Essa amostra de perguntas, bem como os apontamentos aos sentidos que são dados às experiências da criança, nos dão a dimensão de que a criança não fica “pronta” para o desfralde como quem se apronta, a partir de poucas condições ou alguns rituais, para uma festa com data, hora e local. As operações que acontecem e se incrementam desde os primórdios da vida do bebê revelam que o desfralde é um longo processo, não restrito ao momento em que é dada a largada para as fraldas de fato serem deixadas para trás. Tal processo, conduzido por uma dupla protagonista – criança e ambiente, e não pela criança, como por vezes se difunde – é permeado pela cultura.

Em nossa cultura, esse atravessamento pode ser reconhecido, por exemplo, na norma de que os excrementos humanos devem ser depositados em vasos sanitários, no asco que eles produzem, nas formas de brincar. Um brincar cada vez mais cercado por muros, vigiado por telas, impactando, de algum modo, a experiência da criança com o próprio corpo. Não parece por acaso a recorrência de crianças que urinam no vaso ou penico, mas só conseguem evacuar nas fraldas, chão ou roupa. Cabe observar o quê, desse tempo de hipercontrole e excesso de presença, pode estar impedindo as crianças de se separar de seus cocôs.

Não sendo a criança a única protagonista de seu desenvolvimento, talvez seja mais interessante trocar a afirmação “cada criança tem seu tempo” pela pergunta “esbarra onde?”. Afinal, têm esbarrões que são uma delícia. Outros, nem tanto.

Imagem: Martin Vorel, por LibreShot.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

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