Estamos vivendo uma pandemia que envolve dois vírus, ambos extremamente perigosos: o coronavírus e o vírus do fanatismo. Este, não afeta os pulmões, mas destrói a civilização pela intolerância, agressividade, ódio.
O fanatismo é expressão dos fanáticos. Segundo o escritor israelense Amós Oz, em seu livro Como curar um fanático (Companhia das Letras, 2016), fanático é aquele que acredita que só existe uma resposta. Não há espaço para as diferenças, as divergências, outros pontos de vista. A resposta deve ser imediata, simplista, e tornar aquele que a tem como salvador do Outro que não acredita nela. O fanático considera que é sua missão “converter”, impor ou, no limite, exterminar quem se recusa a assumi-la como a única verdade. O fanático não tem dúvidas. Tem a verdade, e qualquer meio é válido para impô-la. Daí o autoritarismo (e não a autoridade).
Vivemos consequências dramáticas desse pensamento narcísico – denominado por Freud de narcisismo das pequenas diferenças – quando assumido por pessoas que têm posições de poder e que transformam sua autoridade em autoritarismo. O vírus do fanatismo está presente na sociedade há muito tempo (Stalin e Hitler são exemplos), mas disseminou-se de modo amplo nas eleições recentes, com Trump e Bolsonaro.
Como evitar o vírus do fanatismo? Cuidando, sendo suficientemente bom, como diz Winnicott.
A personalidade autoritária, base para o fanatismo, começa a se formar na primeira infância. Uma das características do fanático é a incapacidade de empatia com o Outro. Ora, o bebê que vive num ambiente capaz de perceber qual é a necessidade dele (bebê) e lhe oferecer o que ele precisa no momento em que ele precisa (dentro do possível, claro), está construindo o alicerce para essa empatia – que continuará se desenvolvendo na criança pequena a partir de duas experiências fundamentais: “eu sou ouvida” e “há alguém que me ama e que vai me impedir de fazer o que pode me prejudicar”.
É importante ressaltar que a intervenção saudável do adulto deve ter como parâmetro o que é melhor para a criança, ainda que algumas vezes seja necessário considerar o que também é melhor para o adulto, como nas situações em que ele está muito cansado ou irritado, podendo prejudicar a criança. Isso é inevitável. Contudo, “ser melhor para o adulto” precisa ser diferenciado de outra posição, a de que: “O meu desejo para essa criança é o certo, porque é o meu desejo. Eu sei quem ele é, o que ele deseja, o que ele necessita. Eu tenho a verdade”. Nesse caso, o solo para um possível fanático que passa a vida procurando a resposta, a verdade, está sendo fertilizado. O fanático acredita que qualquer meio é válido para obrigar o outro a se submeter a essa (sua) verdade: a ilusão, a mentira, a fraude, a trapaça, a violência. E não estamos falando só de política ou religião. A lista de fanáticos é extensa: há o fanático só come “isso ou aquilo”, o fanático anti-“uma série de coisas”, o fanático da criação “x ou y” dos filhos, etc., etc. Portanto, a responsabilidade de quem educa é enorme; às vezes, tendo até mesmo que combater sua própria personalidade autoritária.
Qual a melhor forma de mitigar o alastramento dos dois vírus? A solidariedade. Mesmo diante de tanta impotência, é importante que todos nós possamos descobrir que temos coisas boas para oferecer ao outro, como tão bem sabem as crianças quando espontaneamente nos presenteiam com um desenho ou coisa que o valha, numa singela, mas sincera comunicação: “você é importante para mim”. Que as crianças (inclusive as que nos habitam) possam seguir tendo a oportunidade de descobrir formas de expressar seus gestos solidários, não por imposição, mas pelo desejo delas. Afinal, numa coletividade, todos são importantes para todos. Espalhemos isso!
Texto escrito por Renate Meyer Sanches.
A Renate é psicóloga (PUC-SP), psicanalista, mestre em Psicologia Social (PUC-SP), doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP) e professora aposentada da mesma instituição. Autora dos livros Psicanálise e Educação: questões do cotidiano, Conta de novo, mãe: histórias que ajudam a crescer e Winnicott na clínica e na instituição (todos pela Editora Escuta).