E vou parir uma montanha, um cordão umbilical, um anticoncepcional…

 “Dói em tudo” disse uma mulher durante seu trabalho de parto. Ela não se referia a alguma parte específica do corpo, nem aos momentos de contração uterina. Estava sendo monitorada e muito bem assistida; não havia nada que pudesse justificar a dor tão intensa e sem localização que a fazia dizer esta frase repetidas vezes: “Dói em tudo”.

Em nossa cultura, é comum que o parto seja algo quase sempre associado à dor.  Por isso, em meus atendimentos como psicóloga acompanhando partos, a dor é um tema recorrente. Mas o que a psicologia, especificamente a psicanálise, tem a ver com as dores do parto?

Mesmo que a dor seja parte de uma experiência corporal na qual a mulher está imersa, o parto não é apenas um evento fisiológico. É evidente que na gestação, no preparo para o parto e durante o trabalho de parto, a maior parte dos cuidados esteja voltada para o corpo da mulher e para o corpo do bebê – isso se faz fundamental porque o parto é uma experiência que atravessa o corpo.

Afinal o que é um corpo? Um corpo é organismo, é dor, prazer, movimento, sexualidade; é o que foi dito sobre ele, o que se espera dele, suas marcas, sua história, sua cultura, seus medos entre tantas outras coisas. É dessa dimensão subjetiva que a psicanálise se ocupa: buscando enxergar além do que se passa no corpo biológico.

Quando a parturiente diz “dói em tudo”, não é apenas ao corpo físico que ela se refere, mas também sobre o que aquele momento, carregado de intensidades, suscita em sua experiência singular – suas dores e angústias. Quando eu me aproximo e ofereço o atendimento, ou pergunto: “o que está doendo?” Ela tem a oportunidade de dizer e escutar a si mesma sobre o que diz. Sobre o que mais dói além do corpo, sobre o medo de passar pela experiência do parto, e o que a chegada daquele bebê significa em sua história de vida.

O trabalho é feito por meio de uma escuta ativa, que não apenas ouve palavras, mas que pode ser realizada por meio do olhar, e sobretudo da presença. Uma presença acolhedora, que se propõe a suportar os transbordamentos da cena e do ambiente.

Em minha experiência num hospital público de São Paulo, escuto mulheres que estão em trabalho de parto ativo, em vias de indução ou em trabalho de parto prematuro; as que passarão pela cesariana ou por parto vaginal. Há as que estão sozinhas, acompanhadas, em sofrimento, tranquilas, no primeiro ou décimo filho; as que planejaram a gestação, as que ainda estão sob a surpresa da chegada de um bebê. Independentemente das circunstâncias e contingências que o parto acontece, é fato que cada mulher vive esta experiência de modo muito particular.

O parto carrega em si algo que é desconhecido. Se trata de um recorte, um tempo curto se comparado ao tempo anterior de gestação e posterior com o bebê. Concentrando-se entre esses dois momentos, o parto pode ser entendido como uma passagem. Numa sociedade que, nos tempos atuais, está cada vez mais focada em produzir certezas e respostas, esse momento-passagem também pode estar sujeito a muitas idealizações.

Por mais que haja um certo preparo, não há maneira de prever como cada parturiente e cada acompanhante vai lidar com o momento do parto. Por isso a brincadeira na abertura deste texto com um trecho da música “Grávida”, de Arnaldo Antunes e Marina Lima: E vou parir uma montanha, um cordão umbilical, um anticoncepcional, um cartão postal. Não se sabe de antemão como cada um vai lidar com essa experiência, nem como será o encontro com o bebê.

Na prática, a escuta psicanalítica em sala de parto pode ser realizada com a mulher, o/a acompanhante e também com a equipe profissional – considerando a interação do ambiente com a singularidade de cada experiência atrelada a uma história subjetiva. O acompanhamento pode ser feito desde o pré-natal ou não, isso vai depender do que foi combinado com a parturiente ou com a instituição em que acontecer o parto.

A essência dos atendimentos está na oferta da escuta. É pensando nas representações sobre o que se passa num momento de intensidades como o parto, que a psicanálise pode contribuir, na aposta de que ali há mais do que apenas um corpo biológico.

Texto escrito por Thays Puerta.

A Thays é psicóloga, especialista em saúde neonatal , pós-graduanda em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar) e coordenadora da rede de atendimento e pesquisa em parturição (RAPPA).