Muito se fala sobre a amamentação e os seus benefícios, mas e o desmame? Apesar de ser um assunto pouco falado pelos profissionais e instituições da saúde e com pouca bibliografia produzida, ele não deixa de ser um momento importante da relação mãe-bebê gerando, por sua vez, muitas dúvidas e angústias. Muito mais difundidas estão as ações e técnicas pró-aleitamento e isso pode deixar as mulheres sem um norte na hora de encerrar este ciclo que, como qualquer um, chegará ao fim. Para pensar sobre o desmame, proponho uma reflexão sobre as diversas vertentes que atravessam a amamentação.
Uma das grandes surpresas do puerpério (mais uma delas!) pode ser a complexidade do processo de aleitamento. No pós-parto a mulher tem que se haver com todo um universo desconhecido. Conhece seu bebê, conhece competências de seu corpo antes inacessíveis e algumas mães de primeira viagem descobrem neste momento que não basta apresentar o bebê ao peito para que ele automaticamente inicie a mamar. Uma adaptação se faz necessária. Mãe e bebê, apresentados um ao outro, no corpo a corpo entre seio e boca, constroem nos encontros e desencontros uma forma de relação.
Tais adaptações podem se tornar bastante complexas, criando dificuldades para o processo de aleitamento. Pode ser que a mulher tenha um desejo enorme de amamentar e isso não aconteça, seja porque um dos dois teve que ficar internado após o parto por tempo prolongado, histórico de cirurgias mamárias que podem prejudicar o aleitamento, doenças ou uso imprescindível de medicamentos não indicados durante a amamentação, entre outros. Pode ser também que este desejo por amamentar não exista e que esta mulher opte pela mamadeira. Mulheres que decidem desde o início não amamentar, não raramente terão de lidar com uma série de julgamentos externos e possivelmente com a sua própria culpa por não estar proporcionando “o que há de melhor” para o seu bebê; no caso, o leite materno.
No Brasil foi-se construindo ao longo dos últimos anos uma série de políticas pró-aleitamento. Semana de amamentação, hospitais Amigos da Criança, treinamentos das equipes médicas e principalmente de enfermagem, cartazes com dizeres sobre os benefícios da amamentação pregados em prateleiras destinadas à venda de fórmulas. Sabemos que todos estes esforços visam combater algo da maior importância que é a mortalidade infantil. Sim, amamentar é bom para a criança, mas será que estas políticas de incentivo à amamentação são medidas que de fato dão amplo apoio à mulher do começo ao fim do aleitamento?
Para um bom processo de amamentação é necessário que o bebê receba o leite e que a mãe esteja confortável em oferecê-lo. Com a chegada do bebê, o corpo da mulher provavelmente estará apto a produzir este leite. E ela? Estará confortável para oferecer o seio? Recebeu orientações adequadas? Não à toa se deu este boom em consultorias que auxiliam a mulher e o bebê neste processo, nem sempre tão natural como se esperava. Surge aqui algo a ser pensado. Amamentar é natural?
Por um lado podemos argumentar que a amamentação é um processo que se dá no corpo, de ordem absolutamente fisiológica e do qual pouco temos controle. Desde que saudável, toda mulher teria condições físicas para amamentar. Porém, a amamentação de um bebê vai muito além de seu valor nutricional. Está atravessada por valores culturais, sociais, econômicos e emocionais que nem sempre estão tão claros quanto seu valor nutritivo, mas que certamente afetam a mulher no momento em que faz uma escolha por amamentar, não amamentar ou desmamar o seu bebê. Desta forma se faz necessária a seguinte questão: quão livre estão as mulheres para fazer esta escolha?
Sabemos que os ideais em torno da amamentação são construídos sob medida. Vão variar de acordo com a cultura do país, da região, da família, e que vai se transformando no tempo conforme a sociedade também se modifica. Nem sempre a amamentação e o lugar da criança na sociedade foram tão valorizados. A partir da implementação de muitas ações públicas e investimentos nesta área o Brasil tomou outros rumos e hoje amamentar é uma cultura difundida e, muitas vezes, imposta e naturalizada.
A filósofa e historiadora Elizabeth Badinter nos mostrou que o amor materno não é natural, mas foi construído ao longo da história. Em seu livro Um amor conquistado: o mito do amor materno (Editora Nova Fronteira), é feita a descrição histórica de toda uma política pública desenhada para convencer a sociedade e as mulheres da importância de se dedicar à maternidade. Nos tempos de Brasil colonial a amamentação ficava completamente fora da expectativa social que se tinha da mulher. Foi no tardio século XVIII que se estabeleceu a nobreza desta tarefa, antes delegada às amas de leite, onde a criança era recebida para o convívio familiar somente quando livre das fraldas e do peito.
Não são apenas os atravessamentos socioculturais que estão envolvidos no processo de aleitamento. O desmame muitas vezes aparece vinculado à volta ao trabalho. Em termos econômicos, quanto deixa de contribuir para a renda familiar a mãe que decide se dedicar ao bebê, à amamentação e não voltar a trabalhar imediatamente? Vale lembrar que a Organização Mundial de Saúde indica que o aleitamento se dê de forma exclusiva até os seis meses de idade e a licença maternidade garantida por lei no Brasil é de apenas quatro meses. Nossa realidade ainda mostra que há preconceito na contratação de mulheres em idade gestacional, riscos de demissões na volta ao trabalho após período de licença maternidade e muita dificuldade na recolocação profissional no pós-parto. Atrelado à isso ainda temos que pôr nesta conta a desvalorização cultural do trabalho doméstico, que em diversas situações fica exclusivamente à cargo da mulher.
Mas quanto vale o leite materno? E se ele pudesse ser medido em dinheiro real, como por exemplo a fórmula que se compra nas farmácias? Será que isso mudaria o valor atribuído à função de amamentar um bebê? Reposicionaria a mulher na sociedade, as políticas públicas, o PIB? No artigo Lost Milk, a pesquisadora australiana Julie P. Smith se propõe a demonstrar a contribuição invisível do leite materno para a economia em seu país. Em seu estudo demonstra o valor monetário da produção de leite materno e como ele poderia ser incluído nas estatísticas econômicas. Como forma de precificar o leite, usa de base o valor do litro de leite materno nos bancos de leite europeus, estimados em U$100,00 o litro. Uma das conclusões a que se chega é que na Austrália, os atuais níveis de produção de leite materno excedem U$ 3 bilhões por ano. Não é pouca coisa!
Ainda temos que considerar que cada mulher, mesmo que inserida num tempo e numa cultura, tem uma trajetória singular. Isso faz com que o sentido atribuído ao ato de amamentar seja particular. Desta mesma forma a hora de desmamar vai depender de diversos fatores novamente de ordem singular de cada situação e família. O que significa para esta mãe dar o peito? Quais eram suas expectativas? Quer ou não quer? Foi amamentada por sua mãe? Por quanto tempo? Que relação tem com seu corpo? E com o corpo do bebê?
Mas afinal, qual é a hora certa para desmamar?
Na maioria dos casos em que a amamentação correu bem, o desmame também acontecerá sem maiores questões, ou seja, sem necessidade de qualquer ajuda ou intervenção externa. A mãe foi ao encontro das necessidades do bebê e proporcionou que ele posteriormente também pudesse ir ao seu encontro numa espécie de cooperação. A certa altura o bebê teve muitas e muitas experiências junto ao seio e isso, que chamarei de “bagagem de boas experiências”, o deixou satisfeito e pronto para dar o próximo passo.
O desmame nada mais é do que uma separação. Há um luto que terá de ser feito uma vez que aquele bebezinho já cresceu, firmou seu corpo, aprendeu a sentar, muitas vezes a andar e falar, dentre tantas outras conquistas que pôde obter desde o nascimento. De sua mãe, muito ainda precisará, mas de outras formas, novas formas às vezes em vias de construção. E como em todo luto, temos algum grau de sofrimento envolvido, seja da mãe, do bebê ou ambos.
Nesse sentido, muitas são as tentativas de minimizar este sofrimento e uma série de dúvidas acometem as mulheres sobre qual seria a melhor forma e hora para o desmame. Nada mais justificável, uma vez que nossa tendência é evitar o desprazer. Além disso, o que encontramos são discursos por vezes contraditórios. Dependendo do pediatra ele será mais ou menos favorável à amamentação prolongada, indicará livre demanda ou vai sugerir intervalos mais estabelecidos entre as mamadas. Vale lembrar que nem sempre essas receitas funcionam para todos. Se buscarem os critérios da Organização Mundial de Saúde a indicação sugere que a amamentação deve seguir até os dois anos ou mais. Ou mais? Quando exatamente seria isso?
A ideia do desmame pode partir do próprio bebê. Observando-os podemos perceber o quanto eles vão mudando de interesse, brincam de atirar ou livrar-se de alguns objetos, perdem o interesse por determinados brinquedos até então extremamente queridos. Porque não interessar-se por outros alimentos, novas experiências e perder o interesse pelo seio?
Também pode partir da mãe o desejo pelo desmame. Neste caso terá que suportar os protestos do bebê, fazê-lo de forma gradativa e sempre observando como ele reage. Se isso ocorrer num momento em que o bebê já se sinta apto à seguir para a próxima etapa, ótimo! Caso contrário, um pouco mais de paciência se fará necessária. Processos como esses não se dão de forma linear. Espera-se certas regressões por parte dos bebês que, ora estarão contentes com o crescimento, ora parecerão ter voltado atrás algumas casinhas. Da mesma forma que mãe e bebê tiveram que se adaptar no início da amamentação, respeitando as necessidades e o tempo de cada um, farão novamente no momento do desmame.
Uma mãe aflita poderá se perguntar o que acontecerá ao bebê se ela lhe negar o peito? Possivelmente teme as retaliações do bebê, seu choro furioso, sentir-se culpada por tamanho sofrimento. É claro que o bebê poderá mostrar chateação no momento do desmame, pois estará privado de algo bom e de que gosta muito. Poderá ter raiva da mãe e passar a vê-la como alguém realmente má por um certo tempo. Mas será que em partes não é essa a tarefa dos pais, neste caso da mãe? De forma próxima desconstruir certas ilusões, conduzir ao crescimento, suportando as tantas formas de protesto e idealizações para que os filhos possam ao fim crescer e relacionar-se com ela como realmente é?
Ao (des)envolver-se da mãe, o bebê deixará o seio para ganhar o mundo, rumo a uma autonomia cada vez maior. Assim como ela poderá retomar aspectos de sua vida que deixou de lado com a chegada do bebê. Deixar o leite materno significa poder ampliar sua experiência alimentar, provar novos sabores, ser alimentado por outras pessoas, à caminho de uma inserção cada vez maior na cultura da qual faz parte. Nesta hora é fundamental a entrada do terceiro, seja o pai, o companheiro da mãe ou qualquer outro ou outra que crie este espaço entre a mãe e o bebê e o ofereça novas possibilidades, sendo elas nutricionais ou afetivas, pois colocar estes limites pode não ser tarefa fácil.
Em resumo, ao se tratar do humano, os caminhos possíveis são infinitos! A amamentação, como tantas outras coisas deste início da vida se dá na relação e o seu fim vai depender muito mais do que se passa entre a mãe e bebê do que qualquer indicador externo. Bom desmame!
Imagem: Google.
Texto escrito por Gabriela Amaral.
A Gabriela é psicóloga (PUC-SP) e psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae), com pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar) e em gestão cultural (Universidad de Salamanca). O interesse pela clínica psicanalítica, família, infância e diferenças culturais sempre estiveram presentes em sua carreira. Trabalhou em educação infantil, fez parte da equipe de atendimento ambulatorial do Hospital Pérola Byington e foi sócia da Ninguém Cresce Sozinho entre 2019-2020.
Para acolhimento das questões emocionais que envolvem o desmame, agende um atendimento psicológico.