Alguns benefícios da leitura na primeira infância já são bastante conhecidos, como estes apresentados pela Campanha “Receite um livro”  realizada em 2015 pela Sociedade Brasileira de Pediatria, Fundação Itaú Social, e Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

Porém, pouco falamos sobre como a leitura, enquanto veículo de linguagem, contribui para o processo de subjetivação do bebê. Lembremos, de saída, que a linguagem não se limita à fala ou à escrita, mas refere-se a todo o sistema de códigos responsável pela comunicação humana.

Subjetivar um bebê é transformá-lo em “gente”. Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês (1896-1971), tem uma frase que nos ajuda a compreender este processo: “não existe bebê sem a mãe”. Isso significa que não existe bebê sem alguém que possa exercer seus cuidados de forma suficientemente boa. Ou seja, sem ser “tudo” para o bebê, ou, no outro extremo, sem apresentar falhas importantes que possam comprometer seu desenvolvimento (pequenas lacunas são necessárias para que ele inclusive possa suportar a realidade, como por exemplo, aguentar esperar um pouquinho).

Quando os cuidados do bebê são suficientemente bons, há um encontro corporal e psíquico entre ele e seu cuidador, como numa dança: com sustentação corporal, troca de olhares e interações resultantes da mútua convocação. Tão imprescindível quanto o corpo e rosto, é a linguagem, que embala essa dança.

Ao cuidarmos de um bebê brincamos com os sons, as palavras; variamos os ritmos, as entonações; emprestamos nossa voz para supor o que ele pode estar sentido; contamos o que estamos fazendo com ele; narramos o que lhe acontece; apresentamos-lhes o mundo. De forma espontânea e lúdica, vamos banhando o bebê de linguagem, transmitindo-lhe e, ao mesmo tempo, inserindo-o na cultura. Assim, nesse entrelaçamento entre o brincar e a linguagem, o bebê vai deixando de ser apenas uma “massa orgânica”, constituindo-se psiquicamente.

Sempre que embebida de afeto, a linguagem atribui sentido às experiências. Tomemos um objeto bem simples: uma bola. Como o bebê aprende que uma bola é uma bola? Com um adulto apontando para o objeto, como um robozinho que diz “Bola, isso é uma bola.”? Ou a partir de uma sucessão de interações afetivas que se dão no dia a dia, tais como:  “Quantas bolinhas tem no seu macacãozinho!”, “Olha a bola vermelha!”, “Parece que você gostou do barulhinho desta bola…”, “Outra vez a bola caiu no chão?!”. Aos poucos, o bebê vai entendendo que alguns objetos que apresentam determinado formato são bolas, não pela repetição mecânica ou isolada da palavra “bola”, mas pelo contexto e tom afetivo em que ela foi usada.

Deste modo, se retiramos o afeto das palavras, temos qualquer coisa que não linguagem. Se retirarmos o brincar de nossas vidas, nos resta uma rigidez que paralisa, adoece. E este é um risco que corremos quando a espontaneidade da voz humana, com suas entonações e ritmos decorrentes do encontro corporal e psíquico, passa a ser substituída por vozes desafetadas, que não levam em conta as singularidades.

Julieta Jerusalinsky, psicanalista que tem se dedicado ao estudo das consequências da virtualização na primeira infância, aponta em “Que rede nos sustenta no balanço da web? – o sujeito na era das relações virtuais”, no livro Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações digitaisÁlgama Editora (2017),  que “em criancinhas pequenas, vemos introduzir-se um artifício por meio do qual os enunciados fixos dos aplicativos passam a ser a matriz de sua entrada na linguagem” (p. 35), de tal modo que a criança passa a responder de forma autômata, da mesma maneira que seu “interlocutor” – a TV, os jogos e alguns brinquedos eletrônicos. Não por acaso, muitas crianças vêm reproduzindo a forma repetitiva da linguagem dos aplicativos e de outros dispositivos digitais, tais como a ecolalia e a fala em terceira pessoa (quando já deveria haver a primeira). A título de elucidação, tomemos o caso de um menino de aproximadamente 2 anos que dizia repetidamente ball, tal como o personagem de um desenho animado. Para a família, ele aprendia inglês, quando de fato, o que ele fazia era reproduzir a fala daquele que se apresentava “disponível” para ele: uma máquina.

De forma semelhante, o brincar espontâneo, que propicia uma experiência criativa e introduz os ritmos presença-ausência (também fundamentais no processo de subjetivação), se perdem nas “relações” digitais. O tempo é o do instantâneo, dificultando o tempo de resposta, de criação. A experiência sensorial que predomina é a visual, levando ao empobrecimento da linguagem (e também de outras sensorialidades, que acabam por comprometer etapas importantes do desenvolvimento infantil, como vemos ocorrer em muitos casos onde há, por exemplo, dificuldades com o desfralde).

Diante deste cenário, ler para bebês acaba sendo, para além dos seus já consagrados benefícios, e ao lado do livre brincar, um antídoto ao “desmantelamento da linguagem” (expressão usada por María Emilia López na mesa redonda “A voz, a palavra e o brincar na primeira infância”, no I Seminário Internacional Arte, palavra e leitura na primeira infância realizado pelo Instituto Emília e Comunidade Educativa CEDAC em parceria com o SESC São Paulo e a Fundação Itaú Social, em 13/03/2018). Ler, contar histórias e cantar permite a criança imaginar. E imaginar é o que a permite brincar, criar, se colocar no mundo. Mas esses ganhos só acontecem quando o adulto que lê, conta histórias, canta, brinca e cuida apresenta disponibilidade para ter com a criança uma experiência permeada por linguagem e afeto. Para isso, ele, que também padece dos efeitos das intoxicações eletrônicas, precisa poder se entregar ao seu próprio tempo, ao tempo da criança e ao tempo do encontro, na contramão do tempo do instantâneo.

Em oposição à vivência da onipresença conferida pela virtualização, ao ler para um bebê imprimimos o ritmo presença-ausência: na atenção/desatenção do adulto ora ao bebê ora ao livro, na atenção/desatenção do bebê, ora ao livro, ora ao adulto ou ambiente, a cada página que se vira, na história que chega ao fim e pode ser recomeçada. Com sustentação corporal, troca de olhares, voz, ritmo, entonação, história e ilustrações, brincamos a partir da mútua convocação resultante da leitura, criando uma narrativa da dupla e dando instrumentos para que o bebê possa construir sua própria narrativa, virar “gente”.

Nota: O Colo com leitura, um dos serviços oferecidos pela Ninguém Cresce Sozinho, tem como um de seus objetivos favorecer que os bebês sejam alimentados de linguagem através das leituras e brincadeiras que acontecem durante a atividade e fora dela, vez que a atividade pode servir como um modelo de referência de maneiras possíveis de estar com o bebê, favorecendo e/ou ampliando a comunicação adulto-bebê e o vínculo entre eles.

Imagens: Google e Campanha “Receite um livro”.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.