A introdução alimentar, recomendada pela Organização Mundial de Saúde a partir dos 6 meses de idade, costuma ser um momento esperado e temido pelos pais e demais cuidadores das crianças. Ao mesmo tempo em que ela representa uma conquista do ponto de vista do desenvolvimento infantil, traz consigo novas angústias tais quais: Qual referência de quantidade de comida usar? O prato inteiro? Como saber se a quantidade foi suficiente para a saciedade e nutrição da criança já que quem porciona o prato é o adulto? E se o bebê não conseguir mastigar? Quantas vezes a criança precisa experimentar um determinado alimento até que se possa considerar que ela não gosta dele?
Essas e outras perguntas geralmente são sanadas por profissionais como pediatras e nutricionistas da primeira infância, tendo como parâmetro estudos científicos acerca da alimentação e nutrição infantil. Esses estudos, além de responderem às perguntas acima de forma universal, também fundamentam medidas de referência, como peso e altura, que são, por sua vez, inseridas numa curva de crescimento padrão para serem comparadas e avaliadas.
Todavia, do ponto de vista psíquico, para além da função biológica de nutrição, a introdução alimentar, precedida ou acompanhada a longo prazo pelo desmame, traz consigo outras implicações.
Comecemos por apontar uma diferença fundamental entre o bebê humano e os demais mamíferos no processo alimentar desde a amamentação, tomando um potrinho como modelo. Esse mamífero consegue, em até duas horas após o seu nascimento, caminhar em direção à sua mãe e mamar quando sente fome. Já o bebê humano precisa de um subterfúgio que convoque a mãe em sua direção, o choro, indicando que está precisando de algo, uma vez que sua autonomia ao nascimento é quase nula (vide “breast baby crawling”). Ou seja, enquanto a saciedade da fome do potrinho não depende de uma convocação de sua mãe e de uma posterior interpretação por parte desta acerca de tal convocação, o bebê humano é completamente dependente dessa operação convocação/interpretação.
Assim, temos que para nós humanos, a fome, a fim de ser saciada, ao mesmo tempo em que se origina de um instinto biológico visando à nutrição e consequente sobrevivência da espécie, é necessariamente atravessada por um processo relacional. Na prática, isso significa que tudo aquilo que os adultos leem no bebê, aparentemente apenas como determinações instintuais, estão recheadas de interpretações singulares desses mesmos adultos, que dizem de seus próprios mundos internos e da cultura em que estão inseridos na relação com seus filhos.
O hiato entre a necessidade biológica de se alimentar, representada pela fome da criança, e o jogo relacional que pode se estabelecer entre a criança e seu cuidador a partir da alimentação vai se tornando mais explícito na medida em que o bebê vai ganhando mais autonomia. Vejamos o caso de um bebê que chora durante a mamada, hora “chupetando” o peito, hora virando sua cabeça e se recusando a mamar; a investigação do fato parte, na maioria das vezes, da seguinte interrogação: o que estaria impedindo o bebê de mamar? Será que a mãe o está segurando na posição correta? Será que o bico de seu peito é favorável à sucção? Será que o leite materno está empedrado ou será que o bebê está sem fome? Será que ele está sentindo algum outro desconforto, como cólica, frio ou sono?
Vemos que, em linhas gerais, o fato de o bebê não estar mamando quase sempre produz no adulto perguntas a respeito da viabilidade da amamentação, mas dificilmente inclui questões acerca das particularidades do bebê e da relação que vai se estabelecendo entre ele e seus cuidadores.
Já quando a introdução alimentar acontece, o bebê apresenta um avanço em relação à sua autonomia, principalmente corporal – agora segura sua cabeça, senta sem apoio, consegue pegar objetos usando os dedos opositores como pinça. Com isso, ele também é capaz de dar sinais mais claros do que se passa com ele, tornando-se mais ativo, inclusive durante o momento da refeição. Ele pode empurrar o prato, bater na colher que vai em direção à sua boca, fechá-la para impedir a entrada de comida, cuspir a comida e assim por diante, mesmo que a comida esteja apetitosa e “esteja na hora de comer”. Hora de quem?
Nesse sentido, a introdução alimentar acaba por escancarar a dinâmica relacional que se estabelece entre a criança e seu cuidador desde a amamentação, obrigando o adulto a tecer outras teorias e interpretações acerca do que está em jogo nos processos alimentares.
Essas interpretações apontam então a forma pela qual os adultos entendem as reações de seus bebês a partir da relação que com eles mantém, mas sempre atravessados por suas histórias pessoais, familiares e culturais. Quando trabalhei como psicóloga, junto com uma nutricionista, em um projeto para a primeira infância de uma ONG, atendendo a populações que viviam abaixo da linha de pobreza, me deparava com todos os tipos de crenças e sabedorias populares: para mulheres imigrantes bolivianas alguns alimentos como o amendoim, eram extremamente proibidos, não porque esse alimento não fosse nutritivamente interessante ou representasse risco de engasgo, mas porque segundo elas, o amendoim, junto com a maiz (espécies de milho típicas do país e base da alimentação da população rural) impedia que a criança desenvolvesse sua fala. Para outras mães, oriundas do norte e nordeste do Brasil, a farinha de mandioca era um ingrediente indispensável em toda a refeição, como suas próprias mães e avós lhes ensinaram, porque é o que “fazia o bebê engordar” – o que não deixa de ser verdade embora não haja aqui uma distinção entre o que nutre e o que engorda enquanto equivalência ao que faz crescer.
Para além dessas situações temos também variações culturais de cada grupo familiar: se em determinada família comer é sinal de vitalidade e saúde, então a expectativa será que o bebê coma o prato todo, suas bochechas e dobrinhas serão apreciadas e valorizadas, ao passo que, se em outra família a obesidade é um tema de preocupação, um bebê que come tudo o que é colocado em seu prato pode ser visto como glutão e suas bochechas e dobrinhas poderão não ser bem-vindas. Do mesmo modo, um bebê que come prazeirosamente o que lhe é oferecido com tanto carinho, pode ser compreendido como um bebê agradecido, que aprecia o que lhe é dado, enquanto um bebê que não se interessa por determinados alimentos ou refeições, cuspindo ou se recusando a comer com frequência, pode ser tomado por um bebê mal agradecido. Ou ainda, um bebê que brinca com a comida na hora de comer, pode ser um bebê alegre, que vive esse momento com deleite convidando o adulto a se divertir com ele, mas pode também ser interpretado como um bebê bagunceiro, que faz muita sujeira, que exige demais de seu cuidador.
As interpretações são as mais variadas possíveis e dependem totalmente dos discursos que circundam o bebê – familiar, médico, midiático, entre outros. Vemos que elas são fundamentais para a constituição psíquica do bebê na medida em que refletem a possibilidade do adulto em tomar o bebê como alguém que tem preferências, gostos e desejos particulares ao mesmo tempo em que o bebê pode reagir a essas interpretações correspondendo ou não às expectativas de tais discursos.
A introdução alimentar acaba assim por imprimir, de forma consistente, a radicalidade das diferenças, reiterando a possibilidade de desencontros entre o bebê e seus principais cuidadores. Desencontros esses que geram enigmas tanto para o bebê, quanto para seus cuidadores de modo a costurar a trama psíquica do primeiro a partir de sua interação com o segundo e que acabam por denunciar, que o outro é, em última instância, sempre um desconhecido – e por isso mesmo, um outro, separado.
Experimentar novos alimentos é também uma forma de experimentar o mundo, para além do corpo materno, destacando-se dele. Não à toa muitas vezes a introdução alimentar acontece concomitante à entrada do bebê na creche/berçário, ou seja, quando seu ambiente de circulação se expande, da casa/família para a escola/mundo, trazendo outras referências de cuidados, formas inusitadas de oferecer e preparar os alimentos, bem como novas interpretações para os comportamentos do bebê, que por sua vez demandam do bebê novas formas de resposta.
Desse modo, mais do que um processo nutricional, a introdução alimentar contribui também para a constituição psíquica do bebê e é a partir dessa dança, entre expectativas do adulto sobre o bebê e como este responde à essas expectativas, que sua autonomia pode ser ampliada.
Imagem: Google.
Texto escrito por Silvia Bicudo.
A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.