Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

(Carlos Drummond de Andrade, no poema Morte do Leiteiro, in Poesia Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004, p. 170)

Era uma pandemia. Foi nesse contexto que algo chamou a atenção de um certo lixeiro. Não um qualquer, mas este que, à alcunha de gari, funcionário da limpeza, empregado da coleta, preferia mesmo ser chamado lixeiro.

Primeiro deu-se a percepção um certo aumento no volume do lixo coletado.

– Também, as pessoas não saem de casa, precipitou-se um colega.

– Estão cagando mais, não viu que acabou o papel higiênico, ralhou outro.

Mas não ele, o Lixeiro, ele não se enganava. Sensibilidade aberta em todos os poros, franco demais para negar a convicção que já lhe crescia desde o estômago, ele sabia que se tratava de Outra coisa. Uma foto a tombar do saco semicerrado, uma ovelhinha de pelúcia ainda íntegra apesar de amarelada, uma gaveta inteira dispensada junto com os papeis que ela emoldurava há anos, quiçá décadas. Consistência, forma, volume e odores nunca dantes experimentados entregavam pistas de que o novo se imiscuía no velho, e o lixo que ele carregava nas costas já não era o mesmo.

Cresceu o enigma na alma do Lixeiro que já não sabia se coletava lixo bom de gente ruim ou lixo ruim de gente do bem. Mas o enigma, que assusta os mais pobres de espírito e espanta os desavisados, não fez recuar o Lixeiro.

À beira dos portões, ora mascaradas, ora marejadas, sorriso nunca largo, apenas ambíguo, pessoas faziam a vigília (à distância, claro, que se aproximar demais traz consequências) do seu lixo despachado. Não entregavam, a um primeiro olhar, resposta que aplacasse as dúvidas e fizesse ceder a curiosidade: pelo que sofriam ou regozijavam, de que abriam mão ou tentavam se livrar tirando de casa volumes e volumes de entulhos íntimos e restos de uma vida que não voltaria jamais.

Ao Lixeiro, faltavam palavras para nomear. E, sem elas, como desvendar de que mensagem afinal era ele o mensageiro?

Seguiu com seu trabalho pois de uma coisa ele sabia bem, dessa não poderia jamais se esquecer: ele conhecia o trajeto do lixo e o seu fim. Qualquer que fosse o objeto transportado, antes precioso e agora descartável, encontraria um único destino: desintegrar-se parcialmente na sujeira do lixão, permanecer esquecido e se-parado das pessoas, ainda que vivo, vivíssimo, emitindo seus gazes, secretando seu chorume por, digamos, 1, 5, 10, 500 anos.

Imagem:  Alexas_Fotos, por Pixabay.

Texto escrito por Tatiana Machado.