Quem transita pelo universo parental já deve ter se deparado com a frase: “mais vale a qualidade do que a quantidade de tempo dispendido com os filhos”. Deve, também, ter ouvido algo em torno da ideia de que “qualidade só é possível diante de certa quantidade de tempo”.

Estejamos de um lado ou de outro, podemos dizer que em ambas as posições reside uma tentativa de mensuração da “boa mãe” ou do “bom pai”, como se a qualidade da relação entre mães/pais e filho(a)s fosse oriunda apenas da intensidade ou do quantum presença/ausência.

Essa tentativa de aferição da relação parece refletir a cultura na qual estamos inseridos; quer seja, uma cultura em que “ser” se confunde com “ter” (“quanto mais, melhor”, e seu reverso “menos é mais”) e que tudo é contabilizado: o valor da arrecadação de impostos do contribuinte, os quilômetros de vias congestionadas na maior cidade brasileira, o número de pessoas presentes em uma manifestação pública, a quantidade de curtidas de uma postagem numa rede social, entre inúmeros outros exemplos.

Nada contra os números! Eles são imprescindíveis. Entre tantos fins, nos oferecem referências, inclusive no que tange o desenvolvimento infantil. O problema – e perigo – é quando os números passam a ditar quanto, quando e como fazer, numa via direta e única.

Se pesquisarmos no Google algum dos marcos do desenvolvimento infantil, como o desmame ou o desfralde, veremos no resultado links intitulados “x passos para”, “y dicas para” ou “obtenha resultado em z dias”. Isso mostra que, em nossa sociedade, desmamar, desfraldar, etc., é um objetivo, e não um resultado decorrente de múltiplos fatores.  Um objetivo que se atinge através de uma listinha de coisas definidas por números tais como idade, etapas, total de vezes e assim por diante. Não por acaso existem incontáveis aplicativos para ajudar nessa contabilidade, ou ditames, de tal modo que quanto mais prescrições, mais clamamos por elas.

Num primeiro momento, os números podem ser um alívio ou mesmo um alento. Diante deles, temos a impressão de saber qual direção seguir. Direção certeira; afinal, é aquilo e pronto. Os números representam o que o especialista falou, o mais experiente falou, o livro falou, o blog falou, o youtuber falou. E se falou, “tá” falado. Não há brechas para pensar, questionar, subverter, fazer de um jeito que faça sentido para cada mãe, pai, criança e família. Sentido como sinônimo de atender às necessidades que propiciam o desenvolvimento e bem-estar de todos.

Este saber que se apropria, como um “recorta e cola”, não é próprio, o que acaba gerando confusões e sentimento de impotência e incompetência muito grandes – “Dá certo com todo mundo, menos comigo”.

O seriado da Netflix, Turma do Peito (2017), de Sarah Scheller e Alison Bell, traz em um de seus episódios a cena de uma roda de conversa com puérperas denominada, em livre tradução, clube do livro. No encontro, cada mãe compartilha suas leituras sobre maternidade e cuidados com o bebê. Audrey, a protagonista, põe na roda Frankenstein, de Mary Shelley. Ainda que com a desaprovação da mediadora do grupo, Audrey diz que o livro tem tudo a ver com o tema: o monstro que ela cria, o monstro que não dorme. Fala, “por vias tortas”, sobre seu grande monstro: a dificuldade em fazer seu bebê dormir e, portanto, suas noites em claro. Abro aqui um parêntese, e faço a confissão do quanto esta cena me tocou, já que converge com a proposta de uma das rodas de conversa da  Ninguém Cresce Sozinho, Colo com Leitura, que aposta na literatura (no caso, a infantil) como ferramenta que favorece o contato íntimo da mãe e do pai consigo mesmos e, consequentemente, a fala sobre os sentimentos e angústias parentais no primeiro ano de vida do bebê.

Diante de tantos manuais de como fazer o bebê dormir, Audrey sai do grupo com a prescrição da coordenadora de “leia livros para fazer seu bebê dormir”. E parece que a recomendação faz sentido; afinal Sophie, uma mãe que frequenta o grupo e levou uma pilha enorme desses manuais, tem um bebê que dorme a noite toda. Logo, se ela leu tudo aquilo e o bebê dela dorme como um anjo, os manuais, quase sempre recheados de números, são um caminho para alcançar aquilo que se almeja (vale a nota: embora os bebês venham sem manual, basta um clique para adquiri-los).

Os dias que se seguem na vida de Audrey, o marido Jeremy e a pequena Stevie, são conhecidos de muitas famílias (desesperadas?) que apostam em treinos para o bebê dormir. Mas, na minha compreensão, é a leitura de Frankenstein por Audrey que faz Stevie adormecer. Ao ler, a mãe oferta sua voz ao bebê. Fica, assim, ao mesmo tempo junto, garantindo a presença, e separada, condição necessária para o adormecimento. Está, com a leitura que toca sua alma, inteira, e por isso, confiante, conferindo tranquilidade ao bebê, também premissa para o adormecimento.

Este é um belo exemplo de que não são números que fazem o bebê dormir. Não é o horário em que ele vai para o berço, quantas horas de sono tem, quanto tempo podemos ou não deixá-lo chorando, quantas e quais histórias precisam ser contadas, quantas mamadas ocorrem no meio da noite  ou voltinhas de quarteirão no carro ou carrinho acontecem. Para um bebê dormir, desmamar, deixar as fraldas, entre outras aquisições, é preciso que aqueles que se dedicam aos seus cuidados possam fazer uso de um saber. Não um saber intelectualizado, nem a mera intuição; ou ainda, a junção dos dois.

O saber parental  é um saber que carrega, para além da informação e intuição, a história de cada mãe, cada pai, cada criança, a observação de si próprio e do outro, as experiências vividas juntos, a disponibilidade de cada um em cada momento. É um saber que se constrói na relação. Um saber único, carregado de sentidos. É somente este saber que pode responder quanto, quando e como fazer. Por tal motivo, quando mães e pais dirigem a nós, psicólogos ou psicanalistas, perguntas com o intuito de obter respostas que apontem quantidade, intensidade, temporalidade ou modos de intervir, nossa resposta é: não sabemos. O saber não está em nós, mas em cada um que vive a relação em questão. O que podemos fazer é ajudar a construir os sentidos, encontrar as respostas, ainda que estas mudem o tempo todo.

Imagem (episódio 2, Turma do Peito): Google.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.