Uma questão que se apresenta com frequência quando pensamos no desenvolvimento e educação infantil diz respeito a como fazer com que a criança pequena se desenvolva dentro dos parâmetros familiares e sociais. Em outras palavras, como fazer para que uma criança cresça obedecendo às regras, combinados e códigos, sejam eles estipulados dentro do microcosmo familiar, como a sequência e os horários da rotina diária (banho, soneca, alimentação), sejam eles socialmente estabelecidos, como as condutas na escola que a criança frequenta, ou o fato de que não andamos pelados pelas ruas e nem usamos fralda a vida toda.
Nesse sentido, é importante destacarmos a existência de duas vertentes principais que se impõe para a criança no seu percurso de inserção no laço social: de um lado as demandas familiares e de outro as demandas sócio-culturais. Vale ressaltar que tais vertentes por vezes se aproximam, convergindo na mesma direção e, por vezes, se distanciam produzindo um movimento que acaba por compor um amplo repertório que facilita à criança a construção de sua própria concepção acerca das condutas a serem seguidas.
Todavia, não é incomum que essas vertentes se distanciem de maneira a não se intercruzarem em nenhum ponto, como quando a criança adentra o universo escolar. Nesta circunstância é possível que algumas diferenças relevantes apareçam: se em casa cada filho tem seu brinquedo evitando as disputas, na escola o brinquedo tem que ser dividido com todas as outras crianças; se em casa não se pode ficar sujo, na escola ficar sujo é inerente às atividades propostas, entre tantas outras situações.
Dessa forma, vemos que, quando se trata de educação e desenvolvimento, não basta seguir roteiros e teorias pré-determinadas, uma vez que é justo nas brechas das particularidades e naquilo que escapa da subjetividade de cada criança e de cada adulto por ela responsável, que as problemáticas se dão. Por isso, ao invés de propor scripts de como fazer, proponho algumas reflexões que possam servir de ponto de partida para pensarmos no caso a caso. Vamos lá?!
Para trabalhar essa temática é necessário resgatarmos como se dá a passagem de uma relação de completa dependência entre a criança e seus cuidadores, para uma relação que vise cada vez mais a autonomia da criança.
A criança pequena, que pôde constituir um “eu” minimamente estruturado, ao mesmo tempo em que é capaz de se perceber como um ser separado do outro, prescindindo de sua presença constante, ainda é fortemente atravessada pelas relações afetivas que com ele mantém. Sendo assim, ao sentir que desagradou um adulto importante, por exemplo, quando faz alguma traquinagem e leva uma bronca, a criança põe temporariamente em questão o afeto que ele sente por ela e, toda vez que após esse momento ela perceber que o adulto continua afetuoso, vai supor que reconquistou seu amor.
Essa lógica infantil (mas não apenas!) que denuncia a dependência afetiva da criança para com o adulto, em alguns momentos funciona a favor de seu desenvolvimento, como motor para algumas conquistas. O desfralde, neste contexto, pode ser bem ilustrativo: é porque a criança percebe a alegria de seus pais ou de seu professor quando ela faz cocô no penico que ela se vê incentivada a fazê-lo. Ou mesmo o contrário, se ela quer demonstrar algum descontentamento ou questão para com o adulto, uma vez que ela perceba que o cocô no penico é por ele esperado, é justo nessa situação que vai demonstrá-lo se recusando a fazer o que dela se espera. Ou seja, é pelo temor de perder o amor de quem ela ama que ela topa abrir mão de certos privilégios, como poder fazer suas necessidades onde e quando ela bem entender.
Porém, quando os adultos começam a fazer um uso dessa dependência como estratégia única de conseguir que a criança faça o que precisa ser feito, tanto para alcançar alguma necessidade básica, como para seguir os códigos e normas sociais, é que os desencontros costumam surgir.
É que nestes casos, o que entra em jogo é um uso ameaçador do afeto para solucionar determinados impasses. “Se você não tomar banho vai ficar sem seu brinquedo preferido”, “se você não comer a vovó vai ficar triste”e por aí vai. São saídas que até podem ter sua eficiência no sentido de fazer com que a criança execute o que está sendo pedido naquele momento pontual; afinal, em se tratando de questões alimentares, quem nunca viveu ou conhece alguém que viva a angústia de uma criança que não come?!
Por outro lado, uma vez que ela só o faz pelo temor da perda do amor do outro, tal estratégia não ajuda a criança na construção de uma consciência própria capaz de estabelecer parâmetros e ampliar seus recursos para lidar com as adversidades impostas pela vida. Ao contrário, tal estratégia promove a manutenção da dependência afetiva na medida em que as leis, códigos e regras, tão necessárias para a convivência social e coletividade, vêm de fora e têm como único critério o amor do outro. Além disso, nessas ameaças, a relação entre causa e consequência, tão cara à formação da consciência, é estabelecida de forma desconexa, “se sou eu quem não come, por que minha avó é quem fica triste”? E ainda, “qual a relação entre eu tomar banho e meu brinquedo favorito”?
Por isso é importante que possamos nos interrogar: qual é nosso objetivo quando usamos uma ameaça para que a criança realize determinada atividade ou comportamento? Se a ideia for apenas “convencer” a criança, esta é uma estratégia que pode ser bem sucedida em um dado momento, mas não garante sua eficácia em outras situações. Geralmente quando o adulto recorre à ameaça, ele pressupõe que diante dela a criança recuará em seu desejo, acatando o que lhe é solicitado; ou seja, trata-se de uma medida que visa prevenir um comportamento não desejado. Porém, quando a ameaça não é suficiente, será que o adulto dá conta de levá-la a cabo, pondo-a em prática? Neste caso, a estratégia deixa de ser a ameaça e passa a ser o castigo como punição por aquilo que não foi feito conforme o solicitado, a posteriori da ação da criança.
Temos que os principais tipos de castigo “disponíveis no mercado” são: físicos (através de palmadas, puxões de orelha, beliscões, entre outros), punitivos (a criança fica sem algo que ela tenha em alta estima, como um brinquedo ou uma atividade) e moral (como ir para o quarto pensar).
No primeiro caso, do castigo físico, é interessante observar que geralmente, quando um adulto bate numa criança, é porque ela o deixou muito bravo. Todavia, ao usar a força física para demonstrar sua braveza, o adulto está indiretamente dizendo para a criança que essa é uma forma aceitável de lidar com alguém que nos embravece. Será que é?
No castigo punitivo, o que parece estar em cena é que a criança, por não querer ficar sem algo que lhe é valioso, atenda ao que lhe foi solicitado, isto é, continuamos no campo da ameaça, sem necessariamente facilitar a construção de uma auto-percepção que inclua a noção de causa e efeito. Por fim, no castigo moral, estilo “vá pensar sobre o que você fez”, dependendo da idade, a criança ainda não tem recursos para fazer essa reflexão sozinha. Nesta circunstância, o adulto perde a oportunidade de servir como mediador para essa reflexão ajudando-a a compreender o que ela perde com determinado comportamento.
Desse modo, vemos que assim como na ameaça, todas essas “categorias de correção” de determinado comportamento da criança também não parecem favorecer o desenvolvimento de recursos que a ajudem no desenvolvimento de sua auto-percepção. Diante desta constatação, é interessante que o adulto possa substituir a ideia de ameaça/castigo por uma reflexão conjunta, de forma a colocar a criança numa posição ativa diante do impasse, apontando a causa e sua consequência: se ela não quer tomar banho, ficará suja e mal cheirosa, resultando que talvez ninguém queira se aproximar dela para brincar. Se ela não quer dormir, ficará cansada e aproveitará muito pouco a escola no dia seguinte (ou qualquer outra atividade valiosa para a criança) e assim por diante.
Vale ressaltar que para que esses apontamentos sejam acolhidos pela criança é importante verificar, consultando a criança, se de fato eles fazem sentido para ela ou partem de um desejo do adulto, como quando o adulto insiste para que a criança coma quando na realidade ela já está satisfeita, ou quando é o adulto quem não tolera ver a criança suja. Por isso, ao nomear a causa e a consequência da necessidade do banho, por exemplo, é interessante investigar junto à criança se ela compreende de que maneira essa relação, de causa e efeito, afeta sua vida. Como seria não ter nenhum amigo para brincar? Isso já lhe aconteceu alguma vez? Como ela se sentiu? São perguntas que ilustram essa proposta.
Outro aspecto que merece destaque nesta temática, relaciona-se a situações mais “trágicas”, como quando a criança joga algum objeto em alguém, machucando a pessoa de maneira a provocar alguma marca (um corte, um roxo), ou se ela morde um amigo deixando a marca do dentinho e provocando um belo choro no “atacado”, a consequência de sua atitude se apresenta de forma escancarada. Nessas ocasiões muitas vezes a própria reação da pessoa afetada pelo comportamento da criança já é suficiente para que ela tenha dimensão de seu comportamento. Basta que os adultos envolvidos possam lhe nomear o que aconteceu e ao mesmo tempo incluí-la nos cuidados, como pedir que ela faça um curativo ou que ajude a limpar o machucado.
Assim, quando vemos a ameaça e o castigo a partir destas perspectivas, ambos perdem sua função punitiva, abrindo espaço para alternativas que convidem adultos e crianças a pensarem sobre qual a melhor maneira de lidar com os impasses que venham a surgir entre eles, visando então uma implicação de todas as partes envolvidas, na resolução da situação da qual se queixam.
Para aqueles que dirão que quando eram pequenos levaram palmadas e sofreram castigos ilógicos como os discutidos no texto e nem por isso são traumatizados ou não se desenvolveram, uma reflexão: castigos podem até não provocar entraves para o desenvolvimento infantil, mas também não o favorece!
Imagem: Google.
Texto escrito por Silvia Bicudo.
A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.