Com certa frequência escuto de mães de bebês, em psicoterapia ou em rodas de conversa que coordeno como integrante da Ninguém Cresce Sozinho, uma pergunta que merece atenção: a maternidade hoje está mais difícil do que já foi e, portanto, as mães de nosso tempo têm sofrido mais do que as de outrora?

Se olharmos para o fenômeno da depressão perinatal, que acomete 25% das brasileiras, segundo pesquisa realizada pela Fiocruz e publicada em 2016, rapidamente respondemos que sim. Contudo, se ficamos presos à crueza da afirmação, corremos o risco de nos limitar à patologização e mesmo à medicalização (que por vezes é extremamente necessária, mas não com a incidência que vemos acontecer), sem abrir nenhuma fenda para pensar o que o significante “mais” pode revelar.

A primeira e mais basal leitura sobre a intensidade do puerpério tem a ver com seu reverso “menos”: a essencial rede de apoio. Diferentemente das culturas em que o desamparo da puérpera é acolhido pela comunidade, em nossa sociedade ainda prevalece a concepção de que os cuidados maternos são instintivos (e não socialmente construídos), a ideia da plenitude dos pais diante do nascimento de um filho (sem brechas para sentimentos ambíguos ou de incompletude) e a expectativa de que eles deem conta de todas as demandas da cria (exigindo uma perfeição inumana). Sem o suporte necessário para lidar com as intensas experiências e as mudanças identitárias e de papéis que mulheres experimentam com a maternidade, a falta de rede de apoio aparece regularmente associada ao que se mostra o maior mal-estar do puerpério na atualidade: a solidão materna.

Embora esta análise seja fidedigna, precisamos lembrar que na época em que as mulheres “sofriam menos” com a maternidade, suas vidas estavam intrinsecamente relacionadas à ideia de instinto materno – tão bem rebatida por Elisabeth Badinter no livro Um amor conquistado: o mito do amor materno – e à sua presença maciça no lar. Mesmo que “sofressem menos”, padeciam, ainda que no paraíso (ou vieram padecer depois que ingressaram no mercado de trabalho?).

Quando o bebê nascia, a mulher continuava no ambiente doméstico. Algo da rotina permanecia, dando-lhe, podemos supor, a sensação de continuidade de sua existência. Ela “ganhava” um bebê, não perdendo, talvez, tanto quanto parecem perder as mulheres que têm “dado à luz” e ficado na escuridão do vazio de si mesmas.

Para grande maioria das mulheres de nosso tempo, o trabalho é, sem sombra de dúvida, um importante, quando não o mais importante, referencial identitário. Todavia, quando a mulher se torna mãe e, mesmo que temporariamente, se afasta do trabalho, ela perde referências elementares da sua vida adulta. Não à toa, escutamos das mesmas mães que lançam a questão inaugural deste texto, que buscam grupos de mães/pais para que possam encontrar, presencial ou virtualmente, outros adultos, especialmente quando em licença maternidade, oficial ou espontânea (situações em que a mulher se afasta do trabalho para se dedicar aos cuidados do bebê – não raro, algumas declaram “mãe” como sua profissão).

Por mais que estas saídas propiciem encontros com outros adultos, estes também estão, diferentemente daqueles do ambiente de trabalho, mergulhados na vivência parental. Pensam, falam, convivem, descobrem e enxergam apenas ou majoritariamente o bebê e aquilo que o cerca. E quanto àquilo que a cerca(va), onde está/ficou? Onde está/ficou a pessoa, profissional, ativa, produtiva, etc. etc. etc., que agora é mãe? A devoção – ao trabalho, aos amigos, a(o) parceiro(a), às coisas de seu interesse pessoal, à vida sem fraldas, mamadas e noites mal dormidas –, que se pulverizava entre pessoas e ocupações (incluindo, quem sabe, o ócio), dirige-se, nesse momento quase que somente ao bebê.

A devoção ao bebê é necessária nos primeiros meses de vida para que se possa atender às demandas dele de uma maneira sensível e delicada, contribuindo tanto para o desenvolvimento físico e psíquico do pequeno ser, quanto para o estabelecimento da função parental. No entanto, conforme o bebê vai crescendo, se a mulher continua privada de seus demais referenciais, corre-se o risco de o bebê ser transformado no “tudo” da mãe, suprindo, ainda que ilusoriamente, os vazios que antes de sua chegada eram preenchidos pelo trabalho, relações interpessoais e outros afazeres e interesses.

O reflexo de o bebê ser transformado em “tudo” (isso se dá por inúmeros e complexos motivos, mas aqui atenho-me ao afastamento da mulher do trabalho e de suas respectivas tramas relacionais como um possível catalisador para esta situação) se revela através dos relatos de mães que se dizem exaustas com um bebê que solicita sua presença constantemente, exigindo um corpo a corpo “enlouquecedor”.  Mesmo que a mãe retorne ao trabalho, esta dinâmica acaba se mantendo, o que nos leva a pensar na urgência de intervir antes que a licença maternidade aconteça, e não apenas quando ela se aproxima do fim.

No que concerne ao bebê, sabemos que ele se comunica pelo corpo, inclusive, via sintoma. Então, o que um bebê que, por exemplo, acorda várias vezes durante a noite ou solicita incessantemente o peito (ambas manifestações aparecem correntemente associadas) pode estar comunicando? Aqui, vale a ressalva, não me refiro somente aos recém-nascidos e seus ajustes iniciais, mas principalmente aos maiorzinhos, com mais de um ou dois anos.

O acompanhamento psicológico de mães que se queixam destes sintomas do bebê aponta para algo que ficou para trás: a liberdade delas roubada pelo próprio filho. E qual não é o sentimento que nos desperta quando somos roubados de algo que nos é caro? Amor não é. Portanto, é preciso, nessas (e em tantas outras) situações lidar com o ódio e a raiva ao pequeno ladrãozinho de liberdade, o fofucho, mas não tanto, bebê.

Quando o bebê é “tudo” e esse “tudo” saqueia a vida da mãe, incluindo trabalho, amigos, lazer, liberdade, etc., temos: 1) o bebê servindo como proteção ao desamparo materno – afinal, a mãe “perdeu” suas referências adultas; 2) a mãe se colando ao bebê, pois, se o “perde”, fica, do ponto de vista da economia psíquica, “sem nada”. Na primeira situação, se a mãe se sente desamparada, como ela pode amparar o bebê? O sintoma, no nosso exemplo, acordar inúmeras vezes ou pedir o peito, em geral é um pedido do bebê de amparo, proteção (não é incomum que algumas destas mães só concebam o desmame com a presença física do pai ou substituto ao lado do “bebê”, a mãe desamparada). Na segunda situação, como a mãe pode se separar do bebê, “ficar sem nada”?

Através de seu sintoma o bebê comunica o sintoma que também é da mãe. Sendo assim, o ciclo ficar-junto/separar/ficar-junto-novamente está criado. Ficar-junto porque a mãe é “tudo” para o bebê e este para ela. Separar porque é necessário e ao mesmo tempo “enlouquecedor” (o que vem primeiro, difícil dizer!).  Ficar-junto-novamente porque, como coloca a psicanalista Junia de Vilhena, viver junto nos mata, separar-nos é mortal (“Viver juntos nos mata. Separarmo-nos é mortal. A ilusão grupal e a incapacidade de ficar só”. In: Escutado a família: uma abordagem psicanalítica. Organização de Júlia de Vilhena. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991) e “tudo” ainda contempla a ilusão que a virtualidade nos trouxe de que a falta/ausência precisa o tempo todo ser preenchida (neste ponto, não tenho como não fazer referência ao livro escrito em 1976 por Shel Silverstein e atualíssimo, A parte que falta, da Companhia das Letrinhas, que tão belamente contempla essa ideia).

Este panorama, embora se configure com muita veemência entre as mães que não estão trabalhando (pela licença maternidade, por opção ou por motivo compulsório, como o desemprego), também se apresenta entre algumas que retornam ao trabalho. No entanto, não parece coincidência que após o nascimento dos filhos muitas mulheres mudam de emprego ou carreira profissional, na tentativa de se manterem pertinho do bebê. Se por ventura o insucesso dessa mudança se apresenta, é preciso avaliar o quanto esta escolha pode estar relacionada à dificuldade de se “separar do filho”. Afinal, em todo trabalho é necessário um investimento libidinal e, se grande parte dele estiver dirigido ao bebê, o resultado dificilmente será outro.

No momento de volta ao trabalho, a culpa – pelo ódio e raiva ao bebê (sentimentos sempre presentes na relação com os filhos, mas que insistimos em negá-los) – costuma aparecer transvestida de amor. Assim, há quem opte pelo ficar-junto, não se separar, como “prova” de amor incondicional. Há quem justifique a si mesma que o regresso ao trabalho se dá por necessidade e não pelo desejo (traição ao bebê?). E há quem retorna ao trabalho, de um jeito mais leve, pois pode suportar a saudade e as perdas inerentes ao crescimento, à vida.

Em se tratando da licença maternidade e retorno ao trabalho, nunca é demais lembrar que para o bebê, se separar também é bom. É o que o permite estar no mundo. Não podemos esquecer isso.

Nota: Este texto é fruto de muitas reflexões sobre o tema “volta ao trabalho após a licença maternidade” tecidas pela autora e por Carla A. B. Gonçalves Kozesinski.

Imagem: Google.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

Conheça nossa roda de conversas maternidade e trabalho e a assessoria de carreira para mães.