Escrevi em outro texto sobre os sentidos e significados que podem ser atribuídos às mordidas, tapas e puxões de cabelo, dados e recebidos, pelas crianças pequenas. Aqui, escrevo sobre o papel do adulto nestas situações, bem como os manejos possíveis.

São pelo menos duas as posições dos adultos neste contexto: ou eles são os responsáveis pela criança que mordeu, ou são os responsáveis pela criança que recebeu a mordida. Os primeiros costumam se sentir constrangidos com a atitude da criança, além de preocupados em relação ao que este comportamento pode dizer dela, ao passo que, os segundos, tendem a ficar muito bravos e sentidos pelo ocorrido, muitas vezes demandando explicações e atitudes reparatórias. No meio deste cenário, qual o papel do adulto? Quais as intervenções que ele pode construir e a serviço do que elas se prestam?

Partindo da compreensão de que as mordidas, os tapas, puxões de cabelo e afins, são alguns dos recursos que a criança pequena tem ao longo de seu desenvolvimento para lidar com o excesso de excitação que algumas vivências lhes despertam, sejam em situações de vívida raiva ou extrema felicidade, o papel do adulto é justamente contribuir para ampliar seu repertório. Como? Construindo junto com ela outros destinos possíveis para tais sensações intensas que sejam mais favoráveis ao convívio social, por exemplo, a partir da fala oral, principal meio de expressão aceito em nossa cultura.

Assim, no percurso do desenvolvimento da linguagem infantil, o adulto tem a função essencial de traduzir, ao intermediar, nomear e interpretar os sentimentos, atitudes e explorações da criança, introduzindo, assim, novas referências para que ela se relacione com o mundo ao seu redor.

Durante situações de conflito, angústia, surpresa, felicidade, tristeza, raiva, medo, entre outros, é importante que o adulto esteja disponível para tentar perceber, sempre a partir da ótica da criança, o que está se passando com ela. Desse modo, é fundamental que ele possa emprestar à criança palavras que vão servir de contorno para suas sensações: “você ficou muito bravo e não gostou do que o fulano fez, por isso o mordeu”. Ou, “você ficou muito feliz ao ver o papai voltar de viagem, não sabia o que fazer com tanta felicidade e ‘nhac’, mordeu o papai”.

No entanto, esta é apenas a primeira etapa da função do adulto neste processo, afinal, não é porque a mordida ou um tapa são as formas que a criança tem de expressar seus sentimentos, que devem ser tolerados. O próximo passo é ajudar a criança a construir alternativas para lidar com eles de uma maneira mais efetiva, tanto do ponto de vista de sua capacidade de expressão, e consequente compreensão do outro, quanto em termos do que é legitimado pelo ambiente social no qual ela está inserida.

Neste sentido, falas como: “ você pode ficar bravo, ficar com raiva, falar bem sério com o amigo, pedir emprestado e esperar, mas não pode machucar o outro”, ou “você viu que machucou (e mostrar a marca), que doeu, que o amigo chorou, ficou chateado”, auxiliam a criança a nomear e reconhecer seus sentimentos bem como as consequências de suas atitudes na interação com o outro. Quando o adulto consegue interceptar uma situação de conflito antes que ela chegue a esse desfecho, ele pode inclusive pedir que as crianças digam essas falas olhando uma para a outra. E, por fim, uma boa estratégia de reparação, é convidar aquele que mordeu ou bateu para ajudar a cuidar daquele que foi mordido, passando pomada, fazendo uma massagem ou passando um lencinho umedecido desses prontos (que aliás, é uma ótima forma de aliviar a dor e prevenir que fique marcado e inchado!).

Ademais, é importante apontar que todas estas posturas do adulto são essenciais, inclusive para a criança que foi “atacada”. Essas falas também lhe servem de modelo e referência ainda que de outra perspectiva, uma vez que, diferente do amigo que mordeu ou bateu, ele tem em primeiro plano a necessidade de expressar a experiência da dor, do descontentamento, da chateação, do susto, ou até mesmo dos efeitos de seu próprio comportamento se a mordida veio em resposta à uma provocação que ele mesmo havia iniciado.

Desse modo, tanto para a família da criança que mordeu como para a família da criança que foi mordida é bom lembrar: o mordido de hoje pode ser o mordedor de amanhã! Mais saudável para a criança, independente da posição que ela esteja, ativa ou passiva, é poder oferecer recursos para que ela construa outras saídas diante das situações que as levam a morder.

Pensando que a escola visa justamente promover, entre outras competências, a sociabilidade da criança pequena, é comum que ela se torne o principal cenário para que as mordidas aconteçam. Assim, a troca entre a escola e a família se faz fundamental para que juntos possam conhecer e refletir sobre suas atitudes e seu contexto atual – até porque, muitas vezes o que aparece na escola não aparece em casa e vice-versa.

Lembro-me, do período em que trabalhava numa escola, do caso de uma garotinha que mesmo depois de ter compreendido que não era legal morder os amigos e de termos realizado várias intervenções, também junto à sua família, no sentido de oferecer-lhe alternativas quando se sentisse tomada pela raiva, acabou por encontrar uma saída que também não era satisfatória: ao invés de morder os outros, quando se percebia enfurecida por algum motivo, mordia sua própria mão. Assim, é relevante destacar que, quando determinados comportamentos persistem mesmo depois de um tempo considerável de tentativas de intervenções e reflexões conjunta, um trabalho mais profundo com a mediação de outros profissionais, como o psicólogo clínico, para avaliar a situação pode se justificar.

Outro aspecto interessante de apresentar no campo das mordidas, é que existe, em nossa cultura, uma situação na qual a mordida é aceitável: justo na relação entre adultos e bebês, quando os primeiros se deliciam ameaçando ou mesmo mordendo os segundos como uma espécie de brincadeira. Sendo esta uma prática comum na família da criança e, se até aqui falamos como a criança usa o adulto como parâmetro, então é provável que a mordida se apresente para essa criança como moeda afetiva. Se este for o caso, novamente aqui cabe ao adulto marcar a diferença para a criança além de lhe oferecer outras possibilidades de expressão e troca de afetos!

Por fim, vale ressaltar que a experiência de compreensão, por parte do adulto, acerca do que a criança está sentindo, se dá por tentativa e erro, como num jogo de “quente”ou “frio”: o adulto faz uma aposta e só depois poderá identificar seus efeitos na criança. Ou seja, isso significa que não existem discursos prontos, cada circunstância e, cada criança, demandará do adulto maneiras particulares de se relacionarem e serem ajudados em suas necessidades.

Imagem: Google.

Texto escrito por Silvia Bicudo.

A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.

Para mais reflexões sobre mordidas infantis, percorra a trilha Limites: sua importância no desenvolvimento infantil.