Uma situação frequentemente vivenciada por pais de crianças entre um e três anos de idade, provocadora de apreensão e vergonha, diz respeito às mordidas que os pequenos dão e recebem em outras crianças, conhecidas ou não, nos mais diferentes espaços.
No senso comum, o discurso mais conhecido sobre o que significa a mordida diz de uma forma de comunicação da criança pequena que ainda não aprendeu a falar. Mas, na prática, o que isso significa? Para refletir sobre essa ideia é preciso compreender, primeiro na teoria, como se dá o processo de desenvolvimento e socialização de uma criança, antes da aquisição de sua linguagem oral tal como a reconhecemos enquanto adultos.
É importante começarmos pensando no fato de que, em seus primeiros meses de vida, o choro é o principal e mais efetivo meio de expressão de um bebê. O adulto por ele responsável, precisa estar constantemente disponível para identificar, através de seu choro, o que ele sente e demanda, como frio e mais um casaquinho, cólica e uma massagem, fome e o leite, e por aí vai. É o adulto que, por tentativa e erro, na medida em que se relaciona com ele, vai tentando interpretar e nomear o que o bebê sente e necessita. Assim, durante um período considerável de tempo, o bebê tem a impressão de que o outro funciona como uma extensão de si próprio, inclusive não sendo capaz de se diferenciar corporalmente daquele que reconhece suas demandas (quase) de imediato.
Se tudo caminhar conforme o esperado nesse processo, o bebê cresce e vai, aos poucos, conquistando alguma autonomia, como sustentar a própria cabeça, sentar-se, engatinhar. Enquanto isso, o adulto também vai ganhando confiança nos cuidados que desempenha sobre ele, podendo dessa maneira diminuir a dedicação ao bebê, ampliando o leque de seus interesses e preocupações, por exemplo ao voltar para o trabalho, ou sair com os amigos sem o filho.
Quando já está um pouco maior, a criança vai se dando conta que, na realidade, o outro não é capaz de adivinhar o que ela sente e necessita, percebendo que ela terá que inventar meios de se comunicar para ser atendida. Em direção à essa descoberta, inicia suas pesquisas a partir do que tem de mais conhecido e próximo – seu corpo, que é fonte de inúmeras sensações. Desse modo, a boca, um dos primeiros órgãos dos quais ela se apercebe, desde muito cedo, a partir da sucção do leite, vira passagem obrigatória de suas explorações. É pela boca que ela conhece o mundo, experimenta sabores, formas, texturas e cheiros.
Neste cenário, antes de ser um meio de comunicação, a mordida pode fazer parte de uma pesquisa importante da criança no sentido de se reconhecer separada do outro, vivenciando todas as repercussões desta descoberta ao longo de seu desenvolvimento em direção à autonomia. Com o intuito de descobrir os efeitos de suas atitudes e de sua força sobre si mesma e sobre os demais ao seu redor, as crianças começam a fazer testes que visam responder questões como: “até onde eu posso ir?”, “o que acontece se eu fizer isso?”. Tais testes podem ser reconhecidos com clareza ao observarmos atentamente o movimento de uma criança que já compreendeu que não é aceitável morder outra pessoa, mas, mesmo assim, chama a atenção do adulto, espera até que ele a esteja observando e “NHAC”, dá uma dentada na criança ao seu lado.
Em ocasiões como esta, é comum, além da mordidela, os puxões de cabelo, empurrões, tapas, saltos e pulos de lugares inusitados, que são muitas vezes, num primeiro momento, interpretados pelos adultos como atitudes descontextualizadas, como se “do nada” a criança apresentasse um destes comportamentos de machucar o outro e ou a si mesmo.
Ora, quando um adulto entende que não havia contexto para determinado comportamento da criança ele já está, em alguma medida, fazendo uma interpretação de sua atitude, supondo sentidos e significados que as justifiquem. Ou seja, é dessa forma que o adulto, sem se dar conta, adentra no campo da compreensão da mordida como forma de expressão da criança pequena. No entanto, se ele não tiver um olhar cuidadoso, corre o risco de fazer uma leitura a partir de suas próprias referências e não do referencial da criança: sob sua perspectiva tais comportamentos são descabidos, mas sob a ótica de uma criança em pleno desenvolvimento podem representar profundos experimentos.
No entanto, vale ressaltar que o entendimento da mordida no campo da pesquisa infantil não exclui sua dimensão enquanto forma de expressão, ao contrário, uma compreensão se dá em relação à outra. Há, por exemplo, situações nas quais a mordida pode ser facilmente relacionada a algum acontecimento do presente, como uma disputa por brinquedos ou por atenção. Nestes casos, os sentimentos envolvidos em tal atitude podem ser reconhecidos enquanto revindicações ou estratégias de defesa da criança que ainda não descobriu outras formas de colocar seus desejos e limites.
Porém, existem outras circunstâncias nas quais a conexão entre uma situação específica e os sentimentos que ela gerou na criança, não está tão explícita ou não se limita à uma vivência única. Quando isso acontece vale o adulto relembrar os últimos eventos na vida da criança a fim investigar o que a mordida poderia estar refletindo. Qualquer alteração na rotina familiar, mesmo que, mais uma vez, para o adulto pareça ser insignificante, ou modificações maiores, como mudança de casa ou escola, viagem de um ou ambos os pais, doença ou morte de algum ente querido, nascimento de um irmão, etc., podem desencadear sensações intensas na criança pequena.
Assim, é importante destacar que a compreensão da mordida como forma de expressão não se restringe ao domínio da agressividade, representada pela braveza ou pela raiva, como é rapidamente associada. Ela também pode vir em resposta à alguma situação carregada de carinho, como a visita de alguém querido, uma brincadeira prazerosa, entre outros. É comum observarmos neste sentido, brincadeiras entre crianças, que começam com beijos e abraços, mas que sutilmente se transformam em uma bela bocada!
Desse modo, em ambas as possibilidades, agressividade ou carinho, o que se passa é um excesso de excitação que a criança não consegue processar, uma vez que ela ainda não possui os recursos necessários para lidar, de forma socialmente aceita, com determinadas vivências. Caberá então, aos adultos responsáveis, a função de ajudar a criança na construção de tais recursos.
Imagem: Google.
Texto escrito por Silvia Bicudo.
A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.
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