O tempo que estamos vivendo parece sombrio. Não só na ordem social, política e econômica. Mas também na civilizatória.
O que torna o ser humano um ser social? A lei. O homem das cavernas só conhecia uma lei: a da natureza, a lei do mais forte. Se um outro tem a comida, o fogo, a fêmea que eu quero e sou mais forte vou eliminá-lo e me apossar do que quero. Mas há um problema aí: se o outro for mais forte que eu, serei eu o eliminado. O pacto civilizatório se dá em torno de um consenso: eu tenho que abrir mão de algumas coisas que quero desde que o outro também o faça. Serei protegido por um grande pai, por uma lei, por uma regra. Preciso abdicar da realização de alguns desejos, mas em troca tenho uma proteção.
A eficácia desse “acordo” tem variado muito ao longo dos tempos e dos lugares. A afirmação, “todos são iguais perante a lei” nunca foi de fato realizada. Mas há gradações desse respeito em cada lugar e época.
Pesquisas demonstram que ao longo dos últimos anos (com exceção da China e da Índia) as diferenças entre os mais ricos e os mais pobre no mundo vêm aumentando. Embora parcelas da camada menos favorecida, em certos lugares, tenham tido um período de ascensão, ou de expectativa disso, para muitos veio a desilusão. O pacto civilizatório, segundo o qual troco a realização de determinados desejos pela segurança da proteção está rompido. Esse pacto que começa a se estruturar no começo da vida, quando a criancinha troca o prazer de fazer cocô onde quer pelo outro prazer de agradar mamãe ao fazê-lo no peniquinho, do adolescente que, embora esteja furioso, não vai bater no pai porque o ama e quer ser amado e protegido. Esse pacto está sendo rompido socialmente. A família ou não pode dar a proteção necessária, ou não exige nada em troca dela. Pior é quando se vai para o âmbito social. Educação, saúde, proteção do ambiente, delinquência, amparo na velhice, clareza de regras no mundo econômico – quem se sente seguro no Brasil de hoje?
O que esse desamparo, esse medo, essa impotência geram? Raiva, angústia, busca de culpados e de grandes pais salvadores (Mitos). Que vivam e expressem sem limitações esse ódio e nos autorizem a fazer o mesmo.
Mundo afora vemos o surgimento de lideranças com esse perfil. Em grande parte, eleitas. Um perfil que nós, psicanalistas, chamaríamos de sociopatas ou, na nomenclatura mais atual (CID 10 –F60.2), de portadores de Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA).
Vamos continuar usando a terminologia mais popular. O que caracteriza um sociopata? Comportamentos impulsivos, explosivos e espontâneos, desprezo pelas normas sociais, capacidade de empatia com algumas figuras familiares próximas mas total falta dela para o mundo restante, uso recorrente da mentira, baixa tolerância à frustração à qual responde com agressividade, tendência a sempre culpar os outros.
Embora tanto sociopatia quanto psicopatia estejam na categoria de Transtorno de Personalidade Antissocial, pois tem pontos em comum (como a falta de empatia), há diferenças importantes. Os psicopatas são pessoas aparentemente normais, que muitas vezes passam despercebidas, são controladas e calculistas, assumem riscos calculados e procuram esconder as evidências de seus atos (por exemplo, os serial killers de tantas séries televisivas). Desconhecem o sentimento de culpa. A psicopatia tem um forte componente inato na sua origem e começa a se manifestar na infância ( vide o filme “Precisamos conversar sobre Kevin”, de Lionel Shriver). A sociopatia, por outro lado, tem sua origem no ambiente. Um mundo ameaçador, marcado pela violência, pelo desamparo, pela falta de limites e de consideração e respeito pelo outro podem gerar traços sociopáticos, que vão se reproduzindo socialmente.
Quem foram os eleitores de Bolsonaro (que nunca escondeu o que era e pensava)? Segundo pesquisas há uma parcela em torno de 30% que, de fato, concordam com suas idéias, propostas e forma de atuar. Mais uma parcela que viu nele a possibilidade de algo Novo, por estar cansado do Velho que sentem que a traiu. E por interesses econômicos ou religiosos. Tudo isso aliado às fake news e à facada que impediu que Bolsonoro tivesse que participar de debates e expor sua ignorância sobre assuntos relevantes. Uma parcela significativa, diante do impasse de duas candidaturas inaceitáveis para eles, anulou o voto ou não votou.
O quadro com o qual nos deparamos hoje é o de um presidente que afirma com todas as letras: “Eu sou assim, e sou o presidente. E faço o que quero”. Esta postura não só é uma grave ameaça à nossa democracia mas também ao pacto civilizatório. Pode dar cada vez mais espaço à lei do mais forte. A destruição lenta da qualidade do ensino (porque pessoas que pensam são perigosas) é parte dessa dinâmica.
É aqui que chego à ideia de uma sociedade com traços sociopatas. É claro que não estou dizendo que toda essa população tem TPA, mas a cultura pode ter. Na medida em que o pacto civilizatório é rompido e sendo lentamente substituído pela lei do mais forte criamos um “Ambiente sociopático” (estou inventando esse conceito).
Tudo isto é muito assustador e, num primeiro momento, o sentimento predominante é a impotência. Por isso, cada vez mais ouço de pessoas íntegras, preocupados com o mundo, com os outros, com sua família, a frase: “Não vejo mais notícias”. É por desinteresse? Não, é por medo. Muito compreensível e justificável. Mas perigoso.
Imagine uma pessoa numa casa no bosque com seus filhos. Ela intui que há um perigo lá fora mas acha que não pode fazer nada em relação a ele. Então o ignora. Só que ele está lá, e pode atacar a qualquer momento. Talvez sozinha não possa fazer nada realmente. Mas se se unir a outros, se puderem detectar onde está a ameaça talvez possam desenvolver recursos para enfrentá-la. A imprensa tem tido um papel importante nesse movimento. A sociedade civil vem começando a se estruturar muito lentamente. Mas cada um de nós pode acender uma pequena lanterna nessas sombras. Conversando com pessoas próximas, refletindo, partilhando. Temos eleições (?) em 2022. Queremos que essa situação continue?
Mas a lanterna mais importante, embora de efeito menos imediato, está na área que considero a mais importante de uma civilização: a educação.
O ganhador do prêmio Nobel de Economia James Heckman demonstrou que o aumento nas desigualdades sociais (base da geração dos traços sociais sociopáticos) só será enfrentado a partir da Educação. Principalmente das crianças até 5 anos de idade, época em que, conforme demonstrado pelas neurociências, as bases do funcionamento cerebral são colocadas. E estamos falando tanto da educação formal quanto da informal. A que se dá nas escolas, nas ruas e nas famílias. A criança que cresce sendo ouvida mas tendo limites que a auxiliam a controlar o que vai ser prejudicial a si mesma e ao outro, que é estimulada na sua criatividade e na sua capacidade de pensar, que aprende a valorizar e respeitar ao outro e a si mesma, que vive a importância da verdade, essa criança será o fundamento de uma sociedade mais saudável.
Vamos acender nossas lanternas.
Imagem: Google.
Texto escrito por Renate Meyer Sanches.
A Renate é psicóloga (PUC-SP), psicanalista, mestre em Psicologia Social (PUC-SP), doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP) e professora aposentada da mesma instituição. Autora dos livros Psicanálise e Educação: questões do cotidiano, Conta de novo, mãe: histórias que ajudam a crescer e Winnicott na clínica e na instituição (todos pela Editora Escuta).