Histórias familiares são aquelas de longa data e também aquelas vividas mais recentemente, mas não menos importantes. E uma história é composta por fatos, sensações, sentimentos e pensamentos que, vez ou outra, mal chegam a parar na mente e logo se vão. Incluem histórias da concepção e da gestação, vivências do parto, as primeiras impressões e trocas de experiências entre mãe e bebê que acaba de chegar, ou a ausência delas, nos primeiros momentos após o nascimento.
Nessas histórias, nem tudo são flores. Nem tudo acontece como o planejado. Aliás, a escolha por ter filhos é uma verdadeira escola de imprevistos e improvisações. De um lado temos que lidar com a vontade de fazer o melhor possível para o bebê. De outro temos que conhecer o bebê, aprender uma função que é exercida pela primeira vez, (mesmo que não seja o primeiro bebê, afinal, cada bebê é único, com suas próprias características e necessidades). Pensamos nesta equação: somamos estes dois aspectos descritos acima (busca por perfeição e falta de experiência prévia), adicionamos o mito de que nasce uma mãe, nasce um bebê (não, é um processo!) e temos como resultado final uma condição emocional (ou seria social?) onde falhar é praticamente inaceitável.
Quando nos perguntam como tem sido a experiência da maternidade, costumamos contar as versões mais bonitas. Falamos do amor que sentimos pelos filhos, mas nos poupamos de dizer sobre os momentos de raiva e exaustão; contamos sobre quão esperados e desejados foram as crias e ocultamos as dúvidas, a incerteza sobre querer ou não ser mãe. Falamos sobre o amor à primeira vista no momento do parto e não contamos sobre aquele estranhamento ao abraçar de forma desajeitada o bebê desconhecido pela primeira vez; não falamos que torcemos para que o bebê fosse do sexo oposto, não falamos sobre os diferentes sentimentos que temos por um filho e pelo outro. Tudo isso carregamos como segredos íntimos, indizíveis até para nós mesmas.
Não falamos por vergonha, por medo de julgamentos, por culpa e até por faltarem as palavras que dão forma aos sentimentos. Ocultamos aquilo que consideramos falhas, absurdos, o que não sabíamos, não queríamos. Não questionamos os motivos deste ocultamento, apenas ficamos em silêncio, nos protegendo para não demonstrar vulnerabilidade ou fraquezas.
Nas redes sociais temos ferramentas para fazer seleções e edições daquilo que queremos publicar, mas a vida não é assim. Apesar de vivermos em tempos de tantas edições, há coisas que permanecem, principalmente quando não elaboradas. Os não ditos, os segredos de família, que às vezes ultrapassam gerações, e mesmo alguns “pontos cegos” que mal somos capazes de nomear, se instalam com força num momento tão delicado que são os primórdios da vida do bebê.
Um paciente já adulto me conta da criança terrível que foi. Me chamou a atenção como ele, desde muito cedo, se colocava em situações de muito risco. Fazia fogueira dentro de casa, brincava numa janela do apartamento em que não havia rede de proteção. Em seguida me conta que sua mãe sofreu alguns abortos, um deles muito traumático, embora ele não soubesse nada a respeito, a não ser que teria sido antes dele nascer e que a mãe tinha sofrido muito. Fiquei me perguntando sobre esse luto. Será que esta mãe foi capaz de elaborar esta experiência? Foi possível falar sobre ela? Estaria o comportamento arriscado do filho associado a esta vivência anterior, seja do luto do filho morto ou do medo de passar por isso novamente?
Fica a pergunta: onde moram os resquícios daquilo que não se apaga, apesar de todo o trabalho psíquico para que não venha à tona? Estes restos insistentes reaparecem, nos desencontros, no “entre” das relações, naquilo que escapa ao nosso controle. Reaparecem da dificuldade em estabelecer vínculos, no comportamento denunciante das crianças, na falta de intimidade e proximidade na relação. Não perceberá a criança, antes mesmo que a própria mãe, a ambiguidade de amor e ódio presentes nos cuidados? Tudo aquilo que se transmite através das palavras, comportamentos ou atos falhos, na relação com os filhos torna-se extremo, extrapolando aquilo que está sob nosso controle.
Poder dizer algo sobre o que foi silenciado, embora difícil, é o que permite a busca por elaboração. O indizível, justamente por não aparecer, fica como um grande elefante na sala que ninguém pode falar sobre ou mesmo um fantasma que ninguém vê, mas não por isso deixa de assombrar.
Para finalizar, vale dizer que somos feitos de muitos restos. São eles que nos humanizam. Quais são os seus?
Imagem: Pixabay.
Texto escrito por Gabriela Amaral.
A Gabriela é psicóloga (PUC-SP) e psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae), com pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar) e em gestão cultural (Universidad de Salamanca). O interesse pela clínica psicanalítica, família, infância e diferenças culturais sempre estiveram presentes em sua carreira. Trabalhou em educação infantil, fez parte da equipe de atendimento ambulatorial do Hospital Pérola Byington e foi sócia da Ninguém Cresce Sozinho entre 2019-2020.