A adoção tem como finalidade responder às necessidades da criança e dos pais, permitindo que ela encontre uma nova família, um ambiente afetivo satisfatório e ao mesmo tempo formativo. A adoção, por sua vez, representa uma possibilidade para pais que não podem ter filhos e que desta maneira têm a possibilidade de exercer este papel. (Gina Levinzon, In: A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica. São Paulo: Editora Escuta, 4ª edição, 2014, p. 24)
A adoção atualmente é definida como uma medida de “proteção” (…). Trata-se, portanto, de uma das medidas aplicáveis pelo Estado, quando há a constatação, também por parte desse Estado, de existência de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes. (Jéssica Oishi. A adoção e o adotável: o desbotar da memória à (des) construção da filiação. Dissertação de Mestrado: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013; p. 8)
Inicio este texto com essas duas epígrafes – de autoras as quais eu admiro o trabalho e a pesquisa – pois entendo ser fundamental que consideremos o entrelaçamento dos campos emocional e jurídico quando tratamos da adoção. Não só porque toda adoção está necessariamente atrelada à regulamentação jurídica, mas também por constatar que o ordenamento jurídico impacta diretamente em aspectos emocionais dos adotantes (ou pretendentes à adoção, conforme nomenclatura utilizada na legislação) e das crianças e adolescentes em adoção.
Esse impacto pode ser sentido, por exemplo, na decisão sobre a idade do filho desejado. Atualmente temos presenciado muitas ações, de entidades ligadas à adoção e dos próprios tribunais de justiça estaduais, que objetivam fazer com que os pretendentes ampliem a faixa etária, aceitem grupos de irmãos e crianças/adolescentes que apresentem algum problema de saúde. Se por um lado, essas ações e campanhas trazem à tona um debate quanto à realidade das crianças que são encaminhadas e estão à espera de uma família adotiva, por outro, podem acirrar sentimentos de angústia, frustração, culpa, entre outros, naqueles adotantes que nunca cogitaram ou não se sentem preparados para adotar uma criança mais velha.
Na verdade, em grande número de pretendentes à adoção, esses sentimentos parecem ser despertados não apenas por tais campanhas, mas sobretudo no momento do preenchimento da Planilha para Cadastramento de Pretendentes a Adoção. Nas questões relativas ao “perfil da criança/adolescente desejada” os pretendentes devem responder quantas crianças pretendem adotar, se concordam em adotar irmãos, se há preferências de cor e sexo e quais condições de saúde são aceitas. Essa é uma etapa inicial do processo de Habilitação para Adoção – e é importante ressaltar que essa planilha pode ser alterada em qualquer momento.
Enquanto etapas como o curso preparatório e, depois, o tempo de espera para ser chamado para conhecer uma criança, podem ser vividos de forma equiparada a uma gestação – a não ser pelo fato de que, diferente da gestação que pressupõe nove meses de espera, no caso da adoção não há tempo previsto para sua concretização, inclusive alguns a chamam de gravidez invisível – o preenchimento da planilha traz à tona uma radical diferença em relação à parentalidade biológica, que é a necessidade de indicar o perfil do filho. Nesse sentido, de antemão os adotantes são convocados a pensar sobre suas reais disponibilidades, recursos internos e limites. São questionamentos que precisam ultrapassar as barreiras da moral e ideais que cada um tem para si, e precisa alcançar um nível mais profundo, digamos assim, e honesto consigo mesmo, acima de tudo. Consigo amar uma criança como filha se a conhecer com XX anos? Como lidar com o preconceito que pode decorrer de uma adoção inter-racial, seja na família extensa, na escola, nas horas de lazer? E se a criança tiver algum problema de saúde? Como acolher a história da criança/adolescente?
Além de olhar para dentro de si mesmo, o preenchimento da planilha também pode ter o efeito de lançar luz sobre possíveis situações de violência que por ventura podem ter sido vivenciadas pelas crianças e adolescentes que são encaminhadas para adoção.
Voltemos ao paralelo com a gestação biológica para ilustrarmos outro importante aspecto da adoção. O recente movimento de humanização do parto e nascimento trouxe em evidência muitas informações sobre os procedimentos médicos realizados de forma naturalizada, e que até então eram desconhecidos pelos futuros pais. A apropriação dessas informações favoreceu o aumento de possibilidades de escolha, por exemplo quanto à forma de parir e nos primeiros cuidados ao bebê, como também permitiu que os futuros pais estivessem mais preparados para diversas situações que podem ocorrer – pois apesar das informações e evidências, cada nascimento é um nascimento. No campo da adoção o vetor do movimento foi inverso, mas com o mesmo objetivo. A necessidade de que os pretendentes estivessem mais apropriados das especificidades da adoção, tanto do ponto de vista jurídico como também relativo às questões emocionais, foi sendo identificada e, assim, no campo legislativo foi incluída a obrigatoriedade de participar de um curso preparatório durante o processo de avaliação inicial; no campo social, os grupos de apoio à adoção e instituições afins vêm assumindo um papel importantíssimo que é o de criar e ampliar os espaços de reflexão sobre os diversos aspectos da adoção. Esses espaços proporcionam que os adotantes reflitam, elaborem os aspectos que podem ser mais difíceis para cada um, aumentem o espectro de recursos internos e dessa forma, possam se reposicionar, inclusive quanto ao perfil desejado, e estar mais cientes das possíveis dificuldades emocionais que podem ser enfrentadas durante o período de adaptação (estágio de aproximação e convivência).
Dito isto, podemos entender que quando os pretendentes elaboram o “perfil da criança/adolescente desejada” é como se pintassem uma paisagem que contemplasse pinceladas com seus projetos de vida, com as informações jurídicas que têm sobre a adoção, com o conhecimento que adquiriram sobre como as crianças e adolescentes são encaminhados para adoção, com os esclarecimentos obtidos sobre como se dá o encontro com a criança/adolescente, com a apropriação que puderam fazer sobre as questões emocionais envolvidas no estágio de convivência, com a avaliação dos recursos (internos e socioeconômicos) que possuem, entre outras questões que podem ser individuais de cada adotante. São muitas tintas, nuances e movimentos. Não à toa existe a possibilidade de alterar a planilha quantas vezes forem necessárias. As contingências da vida podem impor alguma modificação, o tempo de espera pode provocar novos desejos, a possibilidade de manter-se aberto às reflexões sobre os aspectos envolvidos na adoção e sobre si mesmo podem incorrer em novas elaborações, e tudo isso pode configurar um novo projeto de vida, uma nova paisagem.
Vale ressaltar que estar aberto para repensar um projeto de vida não é uma necessidade exclusiva de quem está à espera da chegada de um filho através da adoção, mas neste processo isto se coloca de maneira imperativa. Temos que reconhecer que de saída, muitos pretendentes já tiveram que lidar com a frustração de não poderem ter um filho biológico e com isso precisaram reformular um projeto de vida. Portanto, há um filho que vem sendo esperado há muito tempo.
Considerar a elaboração do perfil do(a) filho(a) desejado(a) como um processo contínuo de apropriação dos aspectos materiais da adoção (legislação, organização dos serviços de acolhimento, etc.) e apropriação de seus desejos, pontos sensíveis, potencialidades, favorece com que as idealizações sobre a criança não se cronifiquem. Ou seja, a idealização do filho é uma etapa psíquica importante para a filiação; entretanto, temos que lembrar que o filho desejado nunca irá corresponder exatamente ao filho real (seja filho por adoção ou não). Em certa medida, os filhos são sempre uma surpresa e os pais precisam estar abertos para acolhê-los, não importando a maneira como chegam em suas vidas.
Imagem: Google.
Texto escrito por Carla A. B. Gonçalves Kozesinski.
A Carla é psicóloga (USP), psicanalista, mestre e doutoranda em psicologia clínica (USP). Tem formação em acompanhamento terapêutico (Céu Aberto), aprimoramento multiprofissional em saúde mental (FAPESP) e pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar). Trabalhou durante nove anos na área da saúde mental e desde 2012 atua na Vara da Infância e Juventude. Foi membro fundadora do grupo Gesto-Rede Psicanalítica (2007-2016) e sócia da Ninguém Cresce Sozinho (2016-2018). Atualmente integra o Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da USP, atende em seu consultório na cidade de São Paulo e é coordenadora de serviços na Ninguém Cresce Sozinho.