No domingo, véspera do aniversário de seu filho, Marta preparou um bolo, conforme especificações solicitadas por ele, para oferecer, na segunda-feira, aos amigos da escola, no dia do seu aniversário.
Logo cedo, na segunda, passou uma mensagem para a escola e algum tempo depois, telefonou para a secretaria a fim de ajustar o horário da entrega.
Era sabido por ela que a escola solicita um comunicado, com antecedência, para que festas sejam agendadas; em geral, as mães da classe são comunicadas pelo responsável da criança para que não enviem lanche naquela data. Contudo, esclarece Marta, “não haveria por que suspender o lanche, pois era apenas um bolo para se servirem após o lanche e em horário livre”. Portanto, não preveniu o grupo de mães na noite anterior e seguiu com o pedido.
Ao conseguir falar com a secretária da escola, Marta recebeu imediatamente a negativa: “Não, hoje você não pode trazer bolo. Já tem uma festa agendada”. Marta tentou argumentar dizendo ser a data do aniversário do seu filho e que não se tratava de uma outra festa e sim apenas de um bolo. A secretária lhe diz que compreende, mas que há uma regra para os eventos agendados. De modo que, só quem poderia autorizar um outro bolo nesse horário, seria o responsável pela criança que tinha a data reservada.
Ante a urgência em resolver o caso, Marta nem se ocupa em questionar a resposta que lhe foi dada. Seguiu o caminho indicado. Ligou para a mãe “dona da data” mas não conseguiu falar com ela. Escreveu-lhe uma mensagem: parabenizou sua criança, contou da coincidência de as crianças fazerem aniversário no mesmo dia; disse-lhe sobre a espontaneidade do pedido de seu filho no último final de semana, bem como sobre a negativa dada pela secretária da escola: a não ser que ela autorizasse! Marta diz ter deixado claro em sua mensagem que seria apenas o bolo, não teria itens adicionais nem conotação de festa.
Apoiada no que seria sua posição, afirma: “se a situação fosse inversa, eu concordaria não somente com o envio de um bolo, ou ainda, se soubesse de um outro aniversariante e este não tivesse levado um bolo para a escola, eu compartilharia o do meu filho, incluindo uma vela para o colega aniversariante”, “certamente ele entenderia” e arrisca apostar: “ele acharia bem legal!”, suspeita Marta. Baseada nessa premissa, aguardou, por uma autorização.
Na resposta estava escrito que sua criança havia completado os anos dias antes; que esta data fora escolhida por não haver outra festa agendada e ela havia contratado com antecedência. Por fim sugeriu que Marta levasse suas comidinhas no dia seguinte afirmando, que dois bolos, no mesmo dia, era demais.
Diante disso ela se questionou:
Será que esta mãe havia percebido o que escreveu? O que será que ela havia lido do que Marta escrevera? Releu novamente para tentar entender se a referência era à quantidade ou à exclusividade. E conta que se fosse à quantidade, oferta excessiva de doce para as crianças, o fator nutricional teria sido sinalizado, desde a menção à regra. Então só restou a hipótese de que se tratava do direito em usufruir do exclusivo, reservado com antecedência. Não havia o que questionar. Como lidar com isso? Era uma pergunta só dela e o primeiro passo era comunicar ao seu filho que, não seria possível partilhar o seu bolo, naquele dia. Afinal, ele seguira para a escola na expectativa de que apesar de ser um dia comum, com lições e compromissos, teria um diferencial no dia do seu aniversário…
Resolveu então, se dirigir pessoalmente à escola para explicar a situação ao filho, a fim de evitar o constrangimento diante da cenário que se anunciara. Iria comunicar-lhe que agendariam um outro dia, pois aquele, já havia sido previamente reservado, com exclusividade, para um colega. Possivelmente ele compreenderia, ressalta Marta, pois certamente ele já teve oportunidade em se deparar com situações similares, ao longo da vida, visto que, por vezes, a espontaneidade esbarra no imprevisto. Contudo, ela assegura “ele precisava ser informado, mesmo que isso pudesse frustrar suas expectativas”. A frustração está relacionada ao inesperado, e isso faz parte do cotidiano.
O trajeto para a escola fora interrompido por uma atitude recuperadora da Instituição: uma assistente da coordenação ligou para Marta, em nome da coordenadora, para dizer que ela podia levar o bolo, que este seria servido no final do expediente escolar.
Questão resolvida? Parcialmente sim; no que diz respeito ao menino, certamente: cantaram parabéns, e já em casa, muito feliz ele contou: “devoraram todo o bolo, estava delicioso”.
Na leitura que fazemos, a coordenação agiu a tempo e as crianças envolvidas não precisaram ter notícias do que se passara; contudo, essa situação nos permite uma reflexão que vai além de algo que é corriqueiro nas escolas.
Previamente agendado aponta na direção da organização para o coletivo. Mas, agendar com exclusividade desloca dessa posição.
É importante que as regras façam parte do cotidiano das instituições e a escola é primeira oportunidade que as crianças têm para lidar com modos de pensar e agir fora da família. A importância da regra também se justifica como proposição de organização, regulamento que determina um princípio para todos e isso possibilita o compartilhamento social. Aliás, a escola é este espaço por excelência, é fonte de aprendizagem, de conhecimento, além de oportunidade de diálogos e troca de experiências.
Observa-se que a escola – como espaço de interação familiar/educativo – deveria sempre adaptar-se às mudanças ideológicas que se anunciam em diferentes tempos histórico-sociais. A escola procura se organizar para acolher os alunos/cidadãos no processo de socialização e educação, a fim de desenvolver um trabalho coerente.
Por isso, vale observar as diferentes direções no que diz respeito à palavra exclusividade no contexto escolar atual. Aqui, exclusivo não é sinônimo de individual. O aluno é visto como individual em relação ao coletivo: inserido numa turma, classificado numa série, dentro de determinada Instituição de ensino. Com tantas instâncias que ressaltam o coletivo, individualizar, deve ser um grande desafio para a escola; e o esforço em considerar as exceções deve provocar um constante questionamento.
Acredito que a criação desta norma possa ser justificativa pelo ponto de vista do convívio coletivo, mas quando a norma que organiza o coletivo aponta para o exclusivo, que efeitos causa?
A experiência contida nesse relato mostra que por causa da exclusividade duas leituras se abrem para a palavra exceção: naquele dia reservado, não cabia exceção; e seu contraponto: o pedido da criança foi espontâneo, não caberia uma exceção? Essa discussão, aponta para uma possível rivalidade veiculada pelos ideais parentais em jogo, excluem a verdade do pedido, qual seja: a posição legítima da criança.
A cena do bolo ilustra a insuficiência da regra e apresenta uma maneira de como a escola pôde lidar uma exceção. Portanto, o presente texto não se presta a relatar a história contada por uma mãe, que sob algum ângulo possa ser vista como queixosa, mas a uma proposta de reflexão: quando será que a regra deixa de ser apenas uma maneira de a escola organizar e acolher um evento que contempla a individualidade, para garantir a exclusividade no espaço coletivo da sala de aula?
O que outras oportunidades como estas podem revelar para as crianças? Minha hipótese para questões como estas é: quer seja por escolha, por vezes sem querer, ou ainda por não saber o que disso resta como modelo para sua vida, os pais tropeçam nos seus próprios ideais.
E a criança? Diante do autoritarismo que há nos ideais parentais, a criança nem aparece. Será que esse singelo exemplo pode nos impulsionar a pensar que, diante delas, por causa delas, valeria o esforço de questionar a importância dos ideais dos pais/educadores, abrindo espaço para que possamos assistir ao que é tão natural nelas: a espontaneidade, a facilidade com que lidam com o imprevisto e, sobretudo, o espírito de coletividade?
Aos interlocutores que se sentirem convocados a pensar questões como estas, compartilho mais alguns questionamentos: será que devemos direcionar a espontaneidade de uma criança? Devemos ensiná-las a antecipar seus desejos para que sejam agendáveis? Como se estabelece um espaço privado em um espaço coletivo, sem que o exclusivo ameace as oportunidades que a escola pode proporcionar às crianças, no que tange ao compartilhamento do social?
Afinal, os pais podem ficar satisfeitos em educar crianças, mas o desafio da escola é bem maior: educar cidadãos. Portanto, os temas sobre compartilhamento e cidadania solidária devem ritmar as relações interpessoais na escola e na família em detrimento da exclusividade.
Pode parecer banal usar um exemplo tão simples para tratar de questões tão complexas. Mas por que não aproveitar de um simbólico exemplo do cotidiano da criança para pensar a criança? Fica como reflexão: como inserir esse discurso no dia a dia das escolas e da família, num trabalho em âmbito interdisciplinar?
Imagem: Lume Brando.
Texto escrito por Adriana Fontes.
A Adriana é psicóloga (UF-PE), psicanalista, especialista transtornos globais do desenvolvimento (USIS-Paris e IP-USP), mestre em psicologia escolar do desenvolvimento humano (IP-USP) e doutoranda no programa de patologias da linguagem (PUC-SP). Fez parte da equipe clínica do Núcleo de Intervenção Precoce do Lugar de Vida e atua na clínica com crianças, adolescentes e adultos. É co-autora do livro O psicanalista na instituição, na clínica, no laço social, na arte (Toro Editora) e autora do livro infanto-juvenil A bola e o bolo (3d Educacional).