A cena é brutal. Um pai, acompanhado de seu irmão e seus dois filhos. A menina, por volta de quatro anos com os pés e pernas até os joelhos amputados, o menino, mais novo que ela, fisicamente intacto, porém emudecido desde o ocorrido. A mãe? A mãe se atirou com as crianças nos trilhos do trem e morreu.
“Assassina!” Foi assim que os médicos do PS que os receberam a chamaram. “Louca!” Foi assim que a assistente social do hospital se referiu a ela. “Ela era usuária de drogas, senhor?” – a equipe de enfermagem perguntou ao pai.
Por que, em nossa sociedade, uma mulher que comete suicídio e tenta acabar também com a vida dos filhos só pode ter esses lugares: assassina, louca, drogada?
É compreensível que, a princípio, tomados por essa situação, nos identifiquemos com as crianças, agora órfãos de mãe. Simpatizamos com aquilo que imaginamos que seja o sofrimento delas – a perda da mãe, o choque da situação, o luto da perda de partes do corpo. É inevitável que nos perguntemos, “que mãe é essa?”
Culturalmente, nos parece impossível conceber que uma mãe, aquela a quem delegamos e confiamos o bem estar de seus filhos, aquela a quem nos parece garantido o afeto e cuidado, possa apresentar qualquer comportamento agressivo, possa infringir qualquer dor em seus próprios filhos.
Mas a vida cotidiana nos mostra, dia após dia, nos noticiários, nos grupos de WhatsApp entre pais, nas conversas superficiais entre vizinhos no elevador, nos debates acirrados nas redes sociais, que a realidade não é bem assim. As mães e não apenas elas, mas os pais também, perdem a paciência, se descontrolam, se irritam, se cansam, tem outros interesses, outras preocupações, outros amores e desamores mesmo que se esforcem para não mostrá-los.
Desse modo, o (mito do) amor materno, aquele que, pautado pela noção de instinto materno, supõe a naturalização de todo o saber das mulheres nos cuidados com seus filhos e junto com isso a proteção de um vínculo de amor, continua a desfalecer. Desfalece quando as redes sociais, ao virarem palco de debates intensos, denunciam a não existência de um único jeito (e natural) de se relacionar, cuidar, educar uma criança; desfalece quando percebemos que o desenvolvimento de uma criança depende de toda uma rede e não apenas de um único responsável, desfalece quando somos confrontados com pequenas desventuras envolvendo pais e filhos, ou quando nos defrontamos com uma situação como apresentada no início deste texto.
Ao nos aproximarmos da história desta família descobrimos que eram vítimas de uma cadeia de negligências, sendo parte de um grande pedaço da população que vive abaixo da linha de pobreza. Moravam em condições insalubres, encaravam a falta de profissionais da saúde em sua UBS (unidade básica de saúde) de referência, padeciam da ausência de transporte público para levar as crianças até a escola, estavam longe da família de origem que vivia em outro estado e por aí vai. Uma vida fadada à precariedade de acesso a condições mínimas de sobrevivência.
Quando colocamos uma mãe, neste contexto, no lugar de assassina, louca ou drogada, nos tornamos mais um ítem de negligência em sua lista na medida em que somos levianos em nosso julgamento, desconsiderando tudo o que ao seu redor falhou. Não havia rede de apoio pública, não havia rede de apoio familiar, não haviam direitos assegurados pelo Estado.
Diante deste contexto, não há amor que por si só, salve uma vida; não há mãe que sozinha, salve uma vida. Quando ampliamos nosso olhar para a situação e nos descolamos dos ideais maternos a que estamos culturalmente sujeitados, podemos deslocar essa mãe para outras posições como “desesperada”, “solitária”, “em sofrimento agudo” e tantas outras.
A possibilidade de uma escuta ampliada e interpretação que leve em conta todos os fatores de interferência, é o que permitirá, neste caso, para as crianças, outras referências para o ocorrido, ajudando-as no processo de elaboração do evento traumático.
Quanto a nós, integrantes desta sociedade, fica advertência: antes de julgar uma situação, antes de reduzir alguém à loucura, maldade (e daí para baixo), quem sabe se formos capazes de acolher as dificuldades ao nosso redor, compreender melhor os motivos que levam as pessoas a fazer determinadas escolhas, poderemos oferecer alguma forma de suporte que viabilize outros destinos para o que a princípio é “apenas” precariedade.
Imagem: Google.
Texto escrito por Silvia Bicudo.
A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.