O universo da reprodução assistida ainda é bastante desconhecido pela população em geral, uma vez que ele fica restrito às clínicas e serviços especializados, bem como aos consultórios médicos onde os casais, homens e mulheres que necessitam de algum tipo de tratamento circulam. Desse modo, para além dos ambientes médicos, são raros os espaços onde o tema é apresentado e discutido em toda sua complexidade, o que acaba por contribuir para esse desconhecimento, alimentando fantasias e preconceitos ao seu redor.

Tais preconceitos podem estar relacionados, entre outros aspectos, à dificuldade de reconhecermos a infertilidade como uma possibilidade, vez que a fertilidade nos parece biologicamente garantida. Assim, um diagnóstico de infertilidade pode implicar na elaboração de um doloroso luto em relação ao corpo até então idealizado, bem como na reformulação do projeto de maternidade e paternidade. Neste sentindo, as técnicas de reprodução assistida desconstroem certas ideias e ideais até então vigentes, por exemplo ao oferecer a possibilidade de um casal conceber um filho sem relação sexual, como na FIV (fertilização in vitro) ou gestar um filho que não necessariamente carrega o material genético de ambos os genitores, no caso da doação de gametas.

E ainda, se pensarmos que a medicina reprodutiva ainda é, para a própria medicina, uma especialidade recente, podemos entender porque as produções e pesquisas sobre o assunto e seus possíveis desdobramentos sócio-culturais e psicológicos estão em fase embrionária.

Um reflexo deste cenário pode ser observado na escassez de publicações de livros infantis sobre o tema. Nos chama atenção que os poucos livros encontrados no mercado editorial foram escritos por diferentes profissionais médicos, psicólogos que trabalham diretamente com o tema, ou por familiares de crianças geradas a partir de alguma das técnicas de reprodução assistida.

Nesse sentido, nossa hipótese é a de que tais livros são fruto da tentativa por parte desses profissionais e familiares de aplacar e mediar a angústia despertada pelas técnicas reprodutivas nos adultos que a elas recorrem, principalmente no que tange a relação que irão estabelecer com a futura criança. Isso porque falar com uma criança sobre reprodução assistida significa falar também sobre sexo e sexualidade, geralmente assuntos incômodos para o adulto, mas acima de tudo significa falar sobre sua origem. Origem essa que em alguns casos particulares não está “assegurada” pela genética mas, ao contrário, assim como a adoção, denuncia que o processo de apropriação do lugar parental é uma construção que não pode ser delimitada apenas pela biologia.

Será então que é por esse motivo que grande parte dos livros infantis que abordam a reprodução assistida colocam o amor na base da origem da criança, sugerindo que é (sempre) por amor a um filho que um casal recorre ao tratamento? Como se ao afirmar e reafirmar repetidas vezes tal amor pudesse liquidar e apagar toda a angústia que o casal, mulher ou homem, teve que passar para que a gestação e nascimento do filho tivessem ocorrido? Como se tal afirmação constante pudesse erguer uma barreira contra os próprios questionamentos a respeito dessa escolha bem como os possíveis palpites alheios? E por fim, seria a instauração desse amor como uma verdade absoluta, uma tentativa de proteção contra possíveis fantasias de que o filho no futuro não aceitaria sua origem já que ela estaria fora do padrão social?

Se estes questionamentos se sustentam, seria essa a solução para ajudar na elaboração de suas respostas? Nos parece que, ao contrário, colocar o amor como algo garantido e dado é fechar a possibilidade de reflexões e construções. Além disso, será que tal postura não  impede que os pais possam viver a gestação e a chegada do(a) filho(a) com ambivalência, isto é, com sentimentos contraditórios como alegria e preocupação ou felicidade e medo, entre outros sentimentos passíveis de qualquer nova situação, mesmo que ela tenha sido desejada e planejada?

Reflexões à parte, são poucos os livros disponíveis no mercado e alguns de difícil acesso, por isso consideramos ainda mais importante dividir com vocês aqueles que conhecemos, vamos conferir?!    

Em LAB – O Planeta que fabricava bebês (de Kátia M. Straube, ilustrações Eliane Cassia Ramos) a autora inventa um planeta para contar sobre o universo da reprodução assistida para as crianças, abordando a inseminação artificial, a fertilização in vitro e a doação de gametas.  

O título em si é interessante na medida em que ilustra uma analogia a respeito da temática: assim como a vida para além do planeta Terra, a reprodução assistida ainda nos é pouco familiar e provoca um misto de curiosidade e estranhamento, não só na população em geral como nos próprios casais que se vêem “obrigados” a recorrer à medicina reprodutiva.

O enredo do livro gira em torno da tentativa, por parte de cientistas, de  solucionar a tristeza dos casais que não conseguem conceber bem, como o baixo crescimento populacional de tal planeta. É digno de nota o fato de que os casais apresentados no livro são apenas os heterossexuais deixando de fora os casais homoafetivos que cada vez mais representam uma parcela significativa das técnicas de RA (reprodução assistida).

Em Descobrindo as Diferenças: A família do Leãozinho é Assim (de Laís Freire, Editora Ensinamentos) a autora utiliza personagens do reino animal para propor uma reflexão sobre as diferenças e particularidades de cada indivíduo, assim como a variedade de configurações familiares possíveis para, ao final, dialogar mais diretamente com crianças geradas através de produções independentes. Desse modo, a narrativa gira em torno de (um) Leãozinho que, ao observar tal diversidade, indaga sua mãe a respeito de seu pai: “Quero saber mais sobre meu papai”.

Já em  Afinal de contas que cegonha é essa? (de Selmo Geber, ilustrações de Júlio Xerfan, Editora Vieira & Lent) a narrativa parte da história de insucesso de um casal na tentativa de engravidar para explicar para a criança como os bebês são concebidos biologicamente, desconstruindo o conto da cegonha, para daí chegar na explicação acerca dos tratamentos de reprodução assistida.

O livro é bastante detalhado e longo, o que dependendo da idade da criança pode ser cansativo e até mesmo incompreensível, por isso o recomendamos para crianças mais velhas.

Por último, em Irmãozinho num vidrinho (de Kátia Perlman, ilustrações de Fernanda Morais, Editora ZIT) a protagonista do livro é Juliana, uma menina de 8 anos, que se vê diante do fato de que agora vai ganhar um irmãozinho que, diferente dela que foi adotada, virá de dentro da barriga de sua mãe, gerando muitas angústias e perguntas. Mas isso não é tudo! Ela ainda vai ter que lidar com o fato de que tal irmãozinho, antes de parar na barriga da mãe, estava num vidrinho!  

A apresentação destes livros nos permite admirar os profissionais que, enquanto pioneiros, aceitaram o desafio de se lançarem nessa seara criando pontos de partida para possíveis reflexões e diálogos. No entanto, ao mesmo tempo, uma leitura crítica dos mesmos nos possibilita observar como a nossa cultura acolhe e transmite o saber a respeito das configurações familiares via reprodução assistida, denunciando suas limitações e dificuldades. 

Texto escrito por Silvia Bicudo.

A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.

Para mais reflexões sobre este tema, participe da roda de conversas sexualidade na infância: do esperado a possíveis riscos, ou agende uma consulta de orientação a pais.