Final e começo de ano sempre é época de balanço. Desejo de um ano melhor, de que o que foi bom se mantenha ou repita, e o que foi ruim seja enterrado e não volte para assombrar. Há quem faça faxina, na esperança de um ano mais leve, limpo e sem enrosco. Banho de mar, de sal grosso, porres para lavar a alma e simpatias de toda sorte acompanham o fechamento de um ciclo. Por alguns instantes, a sensação de deixar para trás o que não se deseja mais, se sobrepõe a (quase) tudo, tão magicamente quanto os fogos de artifícios lançados na noite escura da virada de ano.
O novo ano começa. Mesmo havendo novas histórias, ele se inicia com aquelas que se repetem e/ou continuam a rolar. Entre elas, as histórias em que protagonizamos ser pai e mãe. Histórias que nem sempre entram no tal balanço.
Não é incomum que pai e mãe levem suas vidas enquanto tais no embalo, sem se dar conta do que estão vivendo e fazendo. Entre alguns, só um grande susto, uma “puxada de orelha” ou um acontecimento descomunal os faz sair do automático para parar, pensar, refletir, questionar, se responsabilizar. Entre outros, o clique da percepção demora a chegar, se é que chega.
Falta de vontade? Ignorância? Onipotência? Impotência? Nada disto, tudo isto e muito mais.
Ser pai e mãe é mais do que um laço familiar e social. Ser pai e mãe implica num emaranhado de afetos que se pouco, ou nunca, olhados transforma o fio das relações em nós difíceis de serem desatados.
Não podemos falar em instinto materno ou paterno. A vida se faz para muito além da sabedoria “inata” ou intuição. Mãe e pai são constituídos a partir das relações estabelecidas entre si, com o filho, com seus pais e com o mundo. É como uma colcha de retalhos; emenda daqui e dali, dando a forma que é possível, com o que se tem disponível. Tecido grosso com fino, claro com escuro, grande com pequeno. De um trapo de trapos à uma bela colcha, harmônica, singular.
Acontece, contudo, que na colcha da vida, muitas vezes nossos papéis têm se assemelhado à colcha de retalhos da loja de departamentos, aquela que alguém criou e só temos o trabalho de escolher entre alguns modelos. Mas será que aquela é verdadeiramente a nossa colcha?
Quais são os modelos que estão dispostos nas vitrines do cotidiano? Quais os modelos que temos comprado? Do bom pai, que não deixa faltar nada? Da boa mãe que sabe o que é melhor para o filho? De qualquer “coisa”, já que tudo é igual?
Não há dúvida de que é mais fácil, rápido e tranquilo depositar nos incontroláveis tempo e velocidade contemporâneos o que cabe a cada um de nós, isentando-nos de responsabilidades que devem ser construídas conjuntamente.
Diante do aparente “vai tudo bem” – portanto, da desnecessidade de um balanço – temos, pelo menos num primeiro instante, a “colcha”: o pai, a mãe, o filho. Mas quando olhamos para ela vemos a desarmonia, o esgarçamento. Dá vontade de jogá-la longe, substituir por outra. Ou deixar como está só para não ter trabalho… O fato é que não estamos diante de uma “coisa”; pelo menos não deveríamos estar.
Costurar, construir uma colcha dá trabalho, ainda mais para quem nunca pegou numa agulha! A harmonia de um produto artesanal, único, é conseguida apenas quando conseguimos experimentar, errar, refazer da melhor maneira possível; pedir ajuda, se preciso for. E não é no automático que conseguimos isto.
Fazer-se pai e mãe é um eterno e constante exercício de composição de retalhos, tecidos novos, usados, experimentações, escolhas, abdicações, costuras e descosturas. É um olhar para si mesmo e para o outro de maneira comprometida e responsável.
Não incluir o papel de pai e mãe no balanço anual (semestral, mensal, diário!) é, de certa forma, negar a necessidade deste trabalho minucioso, fundamental. Ao mesmo tempo, desejar ou prometer ser “melhor” pai e mãe só é possível num mergulho de cabeça no seu próprio mundo. Caso contrário, o desejo e a promessa não passam de mais um desejo e promessa que não conseguem ser agarrados e transformados em novas atitudes e comportamentos. Independentemente de o ano estar começando, sempre é tempo de reflexão e mudança!
Nota: Este texto, publicado pela primeira vez em 07/01/2013 no antigo blog Ninguém Cresce Sozinho, foi revisado e alterado minimamente em seu conteúdo original pela autora.
Imagem: Arquivo pessoal da autora.
Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.