Conhecer um pouco da história da legislação brasileira sobre adoção nos ajuda compreender melhor os caminhos que levaram à formulação da lei atualmente em voga em nosso país.

No Brasil, até o século XX, a adoção não era regulamentada juridicamente. Sua prática era permitida apenas a casais que não tinham filhos biológicos, através da entrega de uma criança que fora deixada na Roda dos Expostos – uma roda de madeira fixada no muro ou janela de conventos ou Santas Casas de Misericórdias, como mostra a parte superior da imagem abaixo. Nas rodas podiam ser deixadas crianças até 7 anos; o dispositivo era girado, conduzindo a criança para dentro da instituição sem que sua origem fosse revelada. O fechamento da última roda de nosso país ocorreu em 1950; o retorno desta prática, contudo, tem acontecido em países europeus.

roda-dos-expostos

Fonte: Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

Esse costume deixava os casais e as crianças em situação de vulnerabilidade, pois nenhum direito sobre a adoção lhes era assegurado. As crianças, por exemplo, não podiam receber herança de seus pais, a não ser que a família recorresse ao judiciário e, em audiência, o juiz confirmasse o interesse de ambos na adoção.

Somente em meados do século XIX e início do século XX é que começam a ser formuladas políticas públicas voltadas à proteção das crianças. Neste cenário a primeira legislação sobre adoção é promulgada: Lei 3.071 de 1916, no Código Civil Brasileiro, dentro do direito de família. Esta lei preconizava que a adoção poderia ser realizada apenas para pessoas ou casais sem filhos, com idade mínima de 50 anos, restringindo, desta forma, as adoções para pessoas que não tiveram filhos biológicos. Além disso, deveria haver uma diferença de idade entre os adotantes e os adotados de 18 anos; o adotante poderia ser uma única pessoa, mas caso fosse um casal, deveriam ser civilmente casados. A adoção poderia ser desfeita após a maioridade da criança adotada, se ela e o(s) adotante(s) assim quisessem, ou então “quando o adotado cometer ingratidão contra o adotante”, sem que fosse explicitado na lei do que se tratava exatamente. A regulamentação se dava através de escritura, quer dizer, era feito um contrato e o Cartório era que emitia o documento da adoção sem que houvesse processo judicial. Como, na maioria das vezes, a família biológica estava de acordo com a adoção, a lei não interferiu nos direitos destes sobre a criança, não ocorrendo a destituição desse poder.

Decorreram 40 anos para que novas mudanças fossem efetivadas visando estimular as adoções. A Lei 3.133 de 1957 diminuiu a idade mínima do adotante para 30 anos e a diferença entre o adotante e o adotado para 16 anos, colocando como requisito aos pretendentes que fossem um casal, que tivessem pelo menos 5 anos de relacionamento oficial. A adoção também deixa de ser exclusividade de casais sem filhos biológicos. Um incremento interessante dessa lei foi a possibilidade do adotado, a seu critério, manter o sobrenome da família de origem e/ou acrescentar o sobrenome da família adotante.

Desde a primeira lei, o adotado deveria consentir com a adoção. Em sendo um bebê, a concordância deveria ser dada por seu representante legal – tutor, curador, mãe ou pai. A partir do incentivo da lei de 1957 os juízes da infância (denominados na época como juízes de menores) passaram a pressionar os Cartórios para que somente regularizasse a escritura da adoção de bebês mediante uma autorização judicial. É neste momento que o poder judiciário começa a intermediar a prática da adoção.

Treze anos mais tarde, uma nova lei é promulgada, Lei 4.655 de 1965. O aspecto mais inovador desta lei foi a criação da “legitimação adotiva”. Através de uma decisão judicial as crianças que estavam em “situação irregular” passaram a ter os mesmos direitos dos filhos biológicos. Tais situações foram descritas na legislação como filhos de pais desconhecidos ou pais que declararam por escrito a concordância com adoção. Para as crianças menores de 7 anos, também considerou-se situações em que os pais perderam os direitos legais sobre os filhos e nenhum outro familiar reivindicou sua guarda; já para as maiores de 7 anos, foi prevista a legitimação adotiva para as crianças que já estavam sob os cuidados dos adotantes, como no caso de viúvos(as) ou desquitados(as).

A legislação de 1965 inclui outros dois aspectos, que estão mantidos até hoje: 1) o rompimento definitivo da criança com a família de origem através da formalização do registro de nascimento, fazendo constar o nome dos pais e avós adotantes, suprimindo o nome da família biológica e, por consequência, 2) a irrevogabilidade da adoção, isto é, ela não poderia mais ser desfeita.

As atenções do poder público continuaram voltadas para a infância, e a Lei de 1979, Código de Menores, traz grandes alterações quanto à “assistência, proteção e vigilância” de crianças menores de idade. No que diz respeito à adoção, esta passa a ser incluída agora como uma medida protetiva da infância – e não mais dentro do direito de família. Essa legislação estabeleceu dois tipos de adoção: simples e plena. A adoção simples visava a regulamentação da situação irregular que algumas crianças se encontravam, intermediando o acordo entre famílias, seguindo um rito semelhante ao descrito anteriormente. Já a adoção plena, dissolvia as diferenças entre os direitos de filhos biológicos e filhos por adoção, e explicitou o rompimento de qualquer vínculo entre o adotado e a família de origem. Pela primeira vez, a lei ordena parâmetros para a adoção internacional: os estrangeiros só podiam realizar a adoção simples.

O Código de Menores estabeleceu ainda que os adotantes deveriam comprovar através de documentos as seguintes qualificações: estabilidade conjugal, comprovação de idoneidade moral, atestado de sanidade física e mental e adequação do lar. Tais documentações tornaram-se obrigatórias nos processos de adoção.

A Constituição Federal de 1988 passa a assegurar a igualdade entre os filhos, anunciando no artigo 227: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069 de 1990 regulamenta este e outros princípios relacionados à infância, definindo inicialmente que “criança” são pessoas até 11 anos e 11 meses e “adolescentes”, pessoas entre 12 anos e 18 anos. A intermediação e autorização das adoções pelo poder judiciário passa a ser imperiosa no caso de crianças e adolescentes, deixando de existir a modalidade de adoção simples.

Leila Dutra de Paiva, no livro Adoção: significados e possibilidades, analisa que:

“As principais inovações do Estatuto da Criança e do Adolescente com relação à adoção de crianças e adolescentes são a redução da idade mínima do adotante para 21 anos; a desvinculação da adoção do estado civil do adotante; a impossibilidade de avós e irmãos adotarem; a introdução e regulamentação das adoções unilaterais (um dos cônjuges ou concubinos podendo adotar o filho do outro); a adoção póstuma (que se concretiza mesmo se o adotante falecer durante o processo de adoção); a regulamentação das adoções internacionais (…)” (p. 46-47).

Acrescentamos como novidade a avaliação dos adotantes e das crianças e adolescentes pelo setor técnico do judiciário, validando a inclusão destes no cadastro ou na busca de famílias, respectivamente.

Após 19 anos o ECA sofreu uma grande reformulação através da Lei 12.010 de 2009 – que ficou conhecida como Lei da Adoção. Apesar de seu apelido, esta legislação versa sobre outros aspectos da proteção da infância, objetivando o “aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes”. É esta a legislação válida atualmente.

A adoção continua sendo compreendida como uma modalidade de colocação da criança em família substituta, mas introduz a noção de excepcionalidade. Preconiza que quando um direito da criança ou adolescente está sendo violado ela pode ser protegida através do acolhimento institucional. O primeiro objetivo a ser realizado pela rede de proteção (serviços de acolhimento, equipamentos do SUAS e SUS, vara da infância) deve ser o retorno à família de origem (pais biológicos ou família extensa). Quando esse retorno não é possível, o objetivo passa a ser a colocação em família adotiva. Além disso, segundo a legislação atualmente em vigor, é preciso que os pais biológicos tenham perdido todos os direitos legais sobre a criança ou adolescente para que a adoção possa ser efetivada. A “ação de destituição do poder familiar” dos pais acontece em um processo independente – portanto, tem ritos processuais próprios.

Essa legislação inaugura e regulamenta a assistência a gestantes que desejam entregar o filho à adoção, e a participação dos pretendentes à adoção em cursos preparatórios.

A Lei 12.010 estabelece ainda a criação de cadastros estaduais e nacionais dos pretendentes à adoção, com o objetivo de facilitar o cruzamento das informações entre aqueles que desejam adotar um filho e as crianças desejosas por uma família.

A expectativa das famílias, crianças e adolescentes, na agilidade dos processos de adoção decorrentes da última legislação não foi alcançada. Nesse sentido, muitos atores (instituições e grupos) ligados à adoção têm se dedicado a intensos debates. As compreensões acerca das dificuldades que vêm sendo enfrentadas para que a realmente adoção ocorra não é consensual, levando à sugestão de proposições divergentes. A possibilidade de uma nova mudança legislativa está em curso. No segundo semestre deste ano foi apresentada uma nova proposta legislativa para adoção, e a sociedade aguarda o que está por vir. Um histórico pode dar subsídio para compreender de onde partimos, onde estamos e ajudar na reflexão de onde queremos chegar. Acompanhemos, assim, esse debate com a esperança de que toda a sociedade possa se beneficiar.

O passo a passo para quem deseja adotar um filho pode ser consultado aqui.

Imagem: Google.

Texto escrito por Carla A. B. Gonçalves Kozesinski.

A Carla é psicóloga (USP), psicanalista, mestre e doutoranda em psicologia clínica (USP). Tem formação em acompanhamento terapêutico (Céu Aberto), aprimoramento multiprofissional em saúde mental (FAPESP) e pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar). Trabalhou durante nove anos na área da saúde mental e desde 2012 atua na Vara da Infância e Juventude. Foi membro fundadora do grupo Gesto-Rede Psicanalítica (2007-2016) e sócia da Ninguém Cresce Sozinho (2016-2018). Atualmente integra o Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da USP, atende em seu consultório na cidade de São Paulo e é coordenadora de serviços na Ninguém Cresce Sozinho.

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