Desde antes da gestação os pais depositam no bebê expectativas e desejos a partir de suas próprias histórias, imaginando como será o bebê, se ele vai parecer com o pai ou a mãe, qual será a cor dos olhos, se vai ser mais tranquilo ou agitado, se vai puxar características de alguém da família, e assim por diante. No entanto, embora algumas das características imaginadas possam estar presentes, sabemos que o encontro entre os pais e seu bebê é sempre algo da ordem do imprevisível, por mais que ele tenha sido desejado, planejado e imaginado. Um bebê é, a priori, sempre um desconhecido para seus pais, que por sua vez também são desconhecidos para o bebê. Quando o diagnóstico de uma deficiência física ou cognitiva é realizado logo após nascimento, esse desencontro inicial pode ser vivido de maneira ainda mais intensa. Isso porque um diagnóstico abala de saída as expectativas acima apontadas, convocando os pais a reconhecerem, de forma abrupta, o filho em sua singularidade.
É importante ressaltar que esse ajuste de expectativas e ideais na dinâmica que se estabelece entre um bebê e seus pais é um processo que se impõe ao longo do desenvolvimento das relações familiares, seja ele de forma mais sutil ou radical, estando presente desde a gestação até a vida adulta, como acontece às vezes em relação às escolhas profissionais ou amorosas. Todavia, no caso de relações que se constituem atravessadas pelo diagnóstico de uma deficiência, vemos que certas particularidades merecem nossa reflexão, principalmente quanto aos efeitos desse desencontro inicial e de como a notícia da patologia pode colocar em xeque o que foi esperado para o bebê e as próprias funções parentais frente a algo que desde cedo se coloca como um desconhecido radical.
Por funções parentais nos referimos às ações cotidianas de atenção com o bebê que vão além da simples prática dos cuidados necessários, como a suposição, por parte dos adultos, de certos comportamentos e reações do bebê como intencionais. Tais suposições antecipam ao mesmo tempo em que possibilitam a constituição psíquica do bebê quando, por exemplo, ao amamentar, a função materna transborda o “simples” ato de nutrir a criança, e a mãe pode oferecer significações e leituras do que está acontecendo ali, algo como “que bebê, comilão”, “você deve estar com fome porque brincou muito hoje”, “está fazendo manha, ele sempre faz isso”, e assim por diante. No caso de mães e pais de crianças surdas, ao saber que não serão ouvidos e que talvez não escutem o desejoso “mamãe, papai”, podemos eventualmente notar um movimento de desinvestimento no bebê, como deixar de falar com ele, o que é algo tão precioso tanto para o desenvolvimento da subjetividade do bebê quanto para a apropriação das funções parentais.
Em meu trabalho como psicanalista no Instituto Escuta, acompanho famílias de crianças com surdez profunda, ou seja, que não têm acesso aos sons da fala nem com um aparelho auditivo convencional, chamado de aparelho de amplificação sonora individual. Em geral os pais ficam sabendo logo após a triagem auditiva neonatal (conhecida como teste da orelhinha) que seu filho tem uma perda auditiva de grau profundo e não ouve os sons ao seu redor – das vozes e apelos dos próprios pais – e têm que decidir se o bebê fará a cirurgia do implante coclear, uma alternativa eletrônica de acesso aos sons, e/ou será apresentado à Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Caso os pais optem pelo implante coclear, o protocolo médico preconiza que o bebê use os aparelhos auditivos convencionais até completar o primeiro ano de vida, quando então poderá passar pelo procedimento cirúrgico com anestesia geral para a inserção de eletrodos no ouvido interno (a cóclea), para que um mês depois esses eletrodos sejam ativados e passem a simular o funcionamento de uma cóclea normal.
Apesar de atualmente o implante coclear ser oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e também por muitos convênios médicos, as principais preocupações dos pais giram em torno das seguintes questões: risco da anestesia geral; consequências da intervenção cirúrgica, como a paralisia facial, uma vez que o nervo facial fica próximo ao local da cirurgia; cuidados e gastos relacionados à manutenção do implante coclear; e o investimento posterior em terapias que visam estimular o desenvolvimento de linguagem, considerando que os pais são previamente orientados que o aparelho em si não garante que a criança virá a desenvolver a fala.
Se optarem pela língua de sinais, pais ouvintes terão que compreender que não só o filho, como também eles serão inseridos numa cultura e numa língua até então desconhecida. Conforme coloca o escritor Andrew Solomon, em seu livro Longe da árvore (Editora Companhia das Letras, 2013), é como se desde sempre houvesse esse impasse: ou o filho surdo tenta se adaptar à cultura ouvinte, ou os pais ouvintes fazem essa imersão na cultura surda. Por exigir uma decisão tão precoce sobre um assunto tão primordial como a forma de comunicação, há uma discussão entre profissionais envolvidos na questão sobre as decorrências do diagnóstico ser dado logo após o nascimento do bebê e desde então ter seus efeitos na relação entre a criança e seu entorno.
Trago como ilustração desses efeitos, duas situações que não me esqueço: de uma mãe que parou de ouvir rádio e música – algo que amava – ao pensar que um mundo sonoro ao qual seu filho não tinha acesso, não tinha mais graça para ela, e outra que, sendo professora, se questionava sobre como transmitir o seu saber para um filho que não poderia ouvi-la. Há algo na espontaneidade do fazer e dos cuidados que pode se perder, e nesse caso cuidadores e crianças precisam ser acompanhados para que a relação e o desenvolvimento não fiquem comprometidos.
A preocupação com a subjetividade – dos adultos e do bebê – tem relação portanto com o que desde cedo é construído. Neste meu trabalho observo que muitos pais sentem que não sabem ser mãe/ pai de uma criança surda, e muitos têm dificuldades em colocar alguns limites que considerariam normais caso a criança fosse ouvinte, por suporem que se o filho ouvisse, eles poderiam “somente” explicar. Essa dificuldade em falar alguns “nãos” muitas vezes revela um sentimento de dó, como se a criança surda demandasse algum tipo de compensação: “coitado, ele já não ouve, deixa ele fazer o que ele quer”. Há casos, inclusive, que a surdez suspende o que os pais poderiam ver de potência no bebê, frente ao desconhecido da deficiência: será mesmo que ele vai conseguir se comunicar? A surdez dificultará sua relação com outras crianças? Será que terei que estar sempre por perto para ajudá-lo?
Nesse sentido, o diagnóstico precoce é uma faca de dois gumes: se por um lado ele permite as intervenções (cirúrgicas, terapêuticas e técnicas em geral) num tempo ideal do desenvolvimento infantil, por outro temos que cuidar também do efeito da notícia na relação entre pais e bebês e consequentemente das funções parentais e da subjetivação da criança.
Para a Psicanálise a palavra antecede e possibilita a constituição subjetiva de um bebê não apenas a partir daquilo que lhe comunicamos oralmente ou que dele escutamos, sejam os balbucios ou suas primeiras palavras faladas, mas também a partir daquilo que pode ser interpretado, dos gestos, olhares, expressões e movimentos que com ele trocamos. Quando uma mãe se emudece frente ao filho que não ouve, não é só o som da fala que está em questão, mas principalmente aquilo que acompanha a fala: o prazer no cantar, a tranquilidade do apaziguar à distância, o júbilo ao ver o bebê reagindo à voz materna. Dessa forma, entendo que com a notícia de que o filho não ouve, é muito mais do que a fala dos pais (ou do bebê) que fica em jogo; é a própria elaboração psíquica dessa nova realidade inesperada como possibilidade de construção de uma relação que não foi imaginada anteriormente. Tudo isso é transmitido entre pai, mãe e bebê desde muito cedo. Em última instância, fala-se com um bebê surdo assim como com um bebê ouvinte: apostando que ali onde vemos apenas um ser absolutamente dependente e vulnerável há também um sujeito em constituição, com desejos e demandas próprios.
Imagem: Google.
Texto escrito por Carla Olavarria Rigamonti.
A Carla é psicóloga (PUC-SP), psicanalista, mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP) e diretora clínica no Instituto Escuta.