Ao abordarmos o desenvolvimento da linguagem na infância, é comum que no imaginário social consideremos apenas a dimensão da linguagem enquanto código compartilhado. Ou seja, o nome pelo qual cada objeto, ser vivo ou inanimado, afetos, sentimentos e etc., é socialmente reconhecido. Desvendar essa primeira relação entre a palavra e sua representação é parte fundamental do processo, mas não é suficiente para uma comunicação efetiva, que leve a criança a ser compreendida e atendida em seus desejos, e que possa ser, acima de tudo, singular.
Para que a linguagem tenha a intenção de comunicar algo a alguém, além da capacidade de associar nome e objeto (ou nome e pessoa, nome e sentimento, entre outros), é preciso que seu enunciador faça um uso contextualizado dessas palavras e, mais ainda, que possa brincar com elas de forma simbólica, jogando com suas ambiguidades, duplo-sentidos e metáforas, de modo que uma frase possa ter sentidos outros que não apenas aquele explícito e literal.
Fazer um uso contextualizado das palavras significa, por exemplo, chamar uma poltrona de poltrona e não de cachorro, a não ser que se trate de um jogo no qual se criam novas línguas a partir de uma lógica específica qualquer, como a “língua do P”, ou que a poltrona faça as vezes de um cachorro numa brincadeira. Além disso, é importante lembrar que algumas palavras possuem mais de um significado e que seu sentido só pode ser compreendido a partir de seu contexto, como no caso da palavra “manga” – seria a manga da camiseta ou a fruta manga? Depende.
Ao mesmo tempo, poder jogar simbolicamente com a linguagem implica em admitir certas substituições e deslocamentos, como reconhecer que quando dizemos que “mamãe é uma rosa”, não estamos querendo dizer, ao pé da letra, que ela é uma flor, mas que ela apresenta características que podem lembrar a flor, características essas que variam conforme a intenção daquele que fala e do contexto em que ele fala, denunciando múltiplos sentidos: bonita como a rosa, cheirosa como a rosa, espinhosa como a rosa e assim por diante. Retomando o exemplo da palavra “manga”, além dela ter mais de um significado, ela pode também ter outros sentidos, como quando faz parte da expressão: “isso dá pano pra manga”. Ou seja, aqui, seu sentido depende das demais palavras que a acompanham. Desse modo, quanto maior esse repertório simbólico da criança, mais rica suas interações e maior seu espectro de circulação no mundo.
O processo de aquisição da linguagem implica sempre numa tripla operação: deciframento de código, contextualização do código e um uso simbólico da comunicação, para além do código. Geralmente essa tripla operação acontece ao mesmo tempo e não é possível identificar cada uma delas separadamente no processo de aquisição da linguagem. Todavia, tanto no campo da língua falada, como no campo da língua escrita, há situações em que elas se desarticulam denunciando que elas não são a priori, vinculadas e que este é um trabalho a ser realizado.
No caso de crianças com algum entrave na constituição psíquica, como autismos e psicoses, essa desarticulação costuma se apresentar de forma clara. Neste quadro, é possível que o reduzido repertório de palavras da criança seja acompanhado de um vocabulário próprio, totalmente incompreensível e inacessível aos demais. Dessa forma, são as pessoas ao redor da criança que precisam fazer uma decodificação para então compreendê-la e não o contrário. Vemos aqui a falência da tradução pela criança do código compartilhado.
Vale lembrar que a condição para o início da aquisição da linguagem pelas crianças é o trabalho interpretativo, vindo dos adultos responsáveis pelo bebê, a partir de seus choros e primeiros balbucios. Contudo, é esperado que uma vez que tal bebê tenha recebido a devida estimulação nesta direção, possa assimilar como funciona a comunicação, buscando ele mesmo decodificar o código compartilhado pela maioria. Quando isso não ocorre em função de determinadas conjunturas psíquicas, a criança pode ficar de fora do laço social, na medida em que parece não entender a funcionalidade desse deciframento, como ele é feito e para o que ele serve – o que é bem diferente de dizermos que a criança não é capaz de entender o que estão lhe dizendo.
Outro aspecto particular da aquisição da linguagem nessas crianças se refere à apropriação literal das palavras. De modo geral, ao iniciar o processo de aquisição da linguagem, é comum à todas as crianças uma rigidez em relação à concretude daquilo que dizem e escutam; afinal, antes de poderem jogar com as palavras, primeiro é preciso aprender os seus significados absolutos (ainda que, como já vimos, haja mais de um para a mesma palavra). É provável que ao perguntarmos para uma criança pequena “aonde ela quer chegar?”, quando ela faz uma birra por exemplo na hora de dormir, sua resposta exprima exatamente seu objetivo, supomos, “chegar até a sala de televisão” (para então assistir a mais desenhos antes de dormir).
Porém, na medida em que a criança vai circulando por novos espaços, criando novas referências a partir de suas pesquisas e adquirindo outros conhecimentos, ela pode “se dar conta” de que as palavras, dependendo da maneira como são utilizadas, têm sentidos para além de seus significados e por isso, muitas vezes, dizem mais do que elas representam na literalidade e, consequentemente, podemos ouvir para além do que foi dito.
No caso de crianças com poucos recursos simbólicos essa característica camaleônica da linguagem não se desenvolve, ou se desenvolve de forma precária, esvaziando a possibilidade de construções que tenham sentidos maleáveis. Quando alguém parece perdido em seus próprios pensamentos, com um olhar que nos atravessa, lhe indagamos – “onde você está?”. Esta indagação, neste contexto, não comporta uma literalidade, isto é, não queremos saber onde a pessoa está situada no espaço, mas sim, no que ela está pensando. É uma frase que diz, sem dizer, da nossa percepção de que a pessoa, apesar de estar fisicamente presente, parece mentalmente distante. E assim acontece em vários outros contextos, as possibilidades de combinações de sentido são infinitas – os poetas que o digam!
Vemos ainda que as crianças com entraves na constituição psíquica frequentemente recorrem a um uso automático e estereotipado de algumas frases que elas tomam “emprestadas” de seus filmes, desenhos animados e livros preferidos, em situações aparentemente aleatórias, que não parecem (co) responder a nenhuma questão ou apontamento colocados na ocasião em que são pronunciadas.
Ressalto a importância de se questionar o imperativo da aleatoriedade nessas ocasiões, pois muitas vezes, um ouvinte mais atento e conectado com o universo da criança consegue perceber que a frase por ela escolhida naquele momento pode sim ter alguma relação com o que está se passando ao seu redor. Lembro-me de um episódio em particular da minha infância no qual, uma criança, enquanto seus amigos liam um livro sobre o espaço, cometas e estrelas, começa a repetir insistentemente uma frase: “Seu filho Elroy”. Justamente pela frase ter sido enunciada de maneira performática e robótica, imitando a exata entonação da cena de onde ela foi retirada, que uma outra criança foi capaz de reconhecê-la: tratava-se da abertura do desenho dos Jetsons, que se passa onde? No espaço!
Coincidência ou não, é nosso papel enquanto interlocutores da criança, fazer essa amarração e oferecer, quando possível, uma conexão de sentido. Dessa maneira estaremos ajudando a criança a articular o uso de um vocabulário que pertence à língua compartilhada, e que portanto pode ser compreendido, e a coerência com o contexto em que ele é proferido, sugerindo ainda uma apropriação singular pela criança daquela determinada frase. Algo como “é verdade, os Jetsons são uma família que mora no espaço, vamos lembrar o que mais tem no desenho que nos ajude a imaginar o espaço?”
É a partir de intervenções como esta última que ajudamos a criança a se localizar em relação ao funcionamento da linguagem, auxiliando sua inserção no laço social na medida em que é reconhecida por seus colegas, familiares e demais pessoas com quem convive, como alguém que tem algo a dizer e que sim, é afetada por aquilo que lhe dizem ou dizem na sua presença. Esta perspectiva pode mudar radicalmente a maneira como ela é vista e acolhida em suas demandas. Além disso, se a própria criança é capaz de perceber que sua comunicação produz efeitos no outro, que por sua vez repercutem nela mesma, satisfazendo-a de alguma forma, então ela pode apresentar como efeito “colateral”, maior abertura para estar no mundo e na companhia de seus pares e adultos de referências. Fica o convite!
Imagem: Google.
Texto escrito por Silvia Bicudo.
A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.