A ideia de que “lugar de criança é na escola” atualmente é um consenso, mas não foi desde sempre assim. É a partir da Idade Moderna que a escola torna-se o lugar por excelência do infantil. E no que se refere às crianças ditas “especiais”, essa história é ainda mais recente. Tentemos nos lembrar: quantos de nós tivemos colegas, durante nossa escolarização, que fossem portadores de deficiência ou mais, que tivessem um diagnóstico psiquiátrico? Pois é, em 30 anos houve muitas mudanças no cenário educacional.

Foi somente em 1994, a partir da Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, denominada Declaração de Salamanca, que se afirmou o direito de todas as crianças à escola. Antes disso, a maioria das crianças portadoras de deficiências estavam em Escolas Especiais ou, o que é ainda mais grave, excluídas da possibilidade de circulação social.

A inclusão escolar é de grande importância no sentido de promover um lugar de pertencimento a crianças que antes estavam excluídas do convívio social. Entendo que defendê-la é um princípio ético que garante a todas as crianças a possibilidade de pertencimento a um grupo: o grupo dos alunos. Para além de ter determinada patologia, impedimento ou déficit, aquela criança é aluna. Isso, por si só, lhe dá a chance de circular socialmente e de carregar uma marca psíquica importante a sua constituição subjetiva.

Não obstante, a possibilidade de carregar a identidade de aluno não significa a garantia de que a criança será tomada como tal. Neste sentido, sustento a ideia de que estar na escola e ser aluno não são a mesma coisa. Para se posicionar como aluna e para ser tomada como tal pelo adulto e por seus pares, a criança precisa responder a determinado papel.

Na educação infantil, a experiência de ser aluno guarda relações com o lugar da criança curiosa. A criança que investiga os buracos, que se aproxima dos adultos em busca de respostas, que procura falar e ser compreendida, que brinca, fantasia… Enfim, trata-se de uma criança que apresenta um desejo de aprender sobre o mundo que a cerca. “Como eu era quando nasci?”, “como nascem os bebês?”, “o que acontecerá quando eu crescer?”, etc. Esses são exemplos de perguntas de uma criança que é facilmente tomada pelo educador como aluna. A partir dessas formulações, ela será investida por esse adulto dos elementos da cultura para que possa fazer uso deles no intuito de responder às suas questões.

Mas, e quando uma criança não apresenta interesse pelo outro? Não demanda do adulto respostas ou, ainda, quando evita o encontro com o outro? Neste caso, falamos de uma situação delicada que, embora a criança possa estar na escola, não necessariamente terá possibilidade de fazer uso dessa experiência.

É muito frequente que, diante de situações como essas, a equipe escolar se encontre muito angustiada e, por vezes, imobilizada. Ao não ter respostas sobre como educar aquela criança, pode surgir a impotência no educador. Há situações em que a experiência prévia do professor e os métodos pedagógicos parecem não ser suficientes para permitir o prosseguimento do trabalho com uma criança. Neste momento, o Acompanhamento Terapêutico pode servir como um dos apoios ao processo de inclusão escolar.

A clínica do Acompanhamento Terapêutico tem seu surgimento marcado por um contexto de luta em relação às velhas formas de tratar a loucura. Sua articulação se dá no campo da Saúde Mental, entre os anos de 1960 e 1970, e está diretamente associada à Reforma Psiquiátrica. O acompanhante terapêutico aparece como um dos profissionais encarregados de servir de apoio aos “loucos” que, a partir daquele momento, deixavam de estar nos hospitais psiquiátricos. Como, depois de anos em um manicômio, a loucura poderia voltar a transitar pela cidade? É então, desse acompanhar que se trata essa clínica. Acompanhar o “louco” a reconstruir sua história, a refazer contatos sociais, a transitar pelas regras da cidade, a lidar com os imprevistos do encontro humano… Enfim, o acompanhante terapêutico acompanha a (re)escrita da narrativa de vida de um sujeito.  

Deste modo, o Acompanhamento Terapêutico, desde o início, esteve marcado pelo princípio da inclusão. Esse profissional atua no sentido de permitir que aqueles, antes excluídos do convívio social, pudessem fazer algum uso das regras coletivas no intuito de exercer seu papel de cidadão e, mais do que isso, de encontrar novas maneiras de posicionar-se como sujeito diante de sua história.

Se falo em inclusão na escola é porque, em alguma medida, há os que estão excluídos. Como disse anteriormente, ainda que cada vez mais haja crianças circulando pela escola, isso não significa que naturalmente tornem-se alunos. Para isso é preciso um trabalho. Um trabalho que o acompanhante terapêutico, a partir da peculiaridade dessa clínica na escola, pode exercer desde os princípios da inclusão. De minha parte, além disso, parto também da ética psicanalítica como direção do meu trabalho.

Então, o que faz um acompanhante terapêutico a partir da psicanálise na inclusão de crianças de Educação Infantil?

De maneira geral, entendo que se trata de um trabalho que incide simultaneamente na criança e no professor. Ou seja, se falamos de inclusão, não posso defender que o acompanhante terapêutico se ocupe somente da criança em detrimento do meio em que se encontra. Não defendo, em hipótese alguma, uma clínica descolada do educativo dentro da instituição escolar. Dito de outro modo, ainda que haja algo de terapêutico neste trabalho, ele incide também sobre o educativo.

Neste sentido, trata-se de acompanhar não a criança, mas o vínculo desta com seus pares e professores. Embora o acompanhante terapêutico possa ser convocado para “fazer funcionar” o que não opera entre a criança e a escola, sua resposta pode ser de outra ordem. Nomear as dificuldades e pensar em novas saídas, tanto do lado da escola quanto do lado da criança, pode ter efeitos interessantes.

Quando o acompanhante supõe nos atos da criança com TEA (Transtorno do Espectro Autista), por exemplo muitas vezes entendidos como bizarros e sem sentido uma intenção, a está reinscrevendo no encontro humano ao invés de excluí-la a partir de determinada patologia. Ao fazê-lo, permite à criança ocupar um novo lugar desde onde poderá contar um pouco de si e de seu modo de estar na escola.

Um acompanhante terapêutico orientado pela psicanálise pode sustentar um lugar de não saber  diante da inclusão de um aluno. Isso não significa calar-se diante de um impasse ou crise, mas buscar localizar o saber do lado da criança e da escola. O acompanhante não tem todas as respostas antecipadamente, pois seu fazer se articula ao singular de cada caso. Portanto, não se trata de dar respostas ao professor, mas de escutar. Escutar as inquietações, as estratégias, as angústias e assim construir juntos novas saídas e invenções para a escolarização daquela criança.

Sustento a clínica do Acompanhamento Terapêutico, dentro do paradigma da educação para todos, como um trabalho que caminha na direção da construção do laço da criança com seus pares, com os educadores e com os objetos do conhecimento. Minha hipótese é que esses novos enlaces podem favorecer a construção de múltiplos sentidos para a experiência de ser aluno.

Assim não haveria somente uma maneira de identificar-se com o lugar de aluno na escola. É nos encontros e trombadas da criança com os adultos, com as outras crianças, com os elementos da cultura, com as demandas escolares e ideais que ali se apresentam que ela pode encontrar seu lugar de aluno naquela escola.

Além disso, ocupar o lugar de aluno pode impulsionar a participação da criança nas atividades compartilhadas e a apropriação das regras que organizam o coletivo da escola. Na medida em que esse lugar puder ser suportado pela criança e pelo educador, então a presença do acompanhante terapêutico torna-se desnecessária.

Afinal, se o consenso hoje é de que “lugar de criança é na escola”, então, o próximo passo é construir a ideia de que o lugar de criança na escola é o de aluno. E, mais do que isso, de que há de que há várias formas de ser aluno, todas elas verdadeiras.

Imagem: Ilustração de Paula Vio especialmente para este texto.

Texto escrito por Lenara Spedo.

A Lenara é psicóloga (USP), psicanalista (Fórum Lacaniano – São Paulo), acompanhante terapêutica (Instituto A Casa) e mestre em Psicologia e Educação (USP).