O que define uma família?

Até os anos 1970, o conceito de família era definido pela união de um homem com uma mulher através do casamento, e os filhos vindouros dessa relação. Os papéis sociais do homem e da mulher estavam apoiados em uma organização patriarcal – de maneira genérica, podemos dizer, que nesse tipo de organização é conferido ao homem o lugar privilegiado de poder.

Para estudiosos do tema, como a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, as mudanças ocorridas nos anos 1960, como o aumento do número de separações e divórcios, a inserção da mulher nos espaços públicos (engendrado pela mudança do papel social feminino em relação ao poder, mercado de trabalho e maternidade), a maior independência da sexualidade provocando alterações nas relações afetivas (devido ao surgimento da pílula anticoncepcional), foram fatores que colocaram em xeque aquela definição.

Somada a essas mudanças, nos anos 1980, o avanço da medicina no campo da reprodução assistida possibilitou que pessoas pudessem ter filhos independentemente do casamento ou da relação sexual.

Todos esses fatores impulsionaram outras formas de lidar com a sexualidade e com as questões de gênero, levando as famílias a se constituírem a partir de outras configurações  para além de pai, mãe e filhos. Segundo dados do IBGE e algumas pesquisas do campo das ciências sociais, dentre as principais mudanças verificadas no Brasil, podemos citar: aumento da união estável, aumento significativo das famílias monoparentais (em que apenas um dos pais assume a responsabilidade pelos filhos), aumento de famílias recompostas (separação/divórcios e novos casamentos), acolhimento de agregados (enteados e/ou outros familiares), casamentos homoafetivos, casamentos tardios, aumento de parentalidade após os 30 anos, redução do número de filhos, aumento de famílias homoafetivas ou de pessoas sozinhas tendo filhos por adoção ou reprodução assistida.

Esses arranjos familiares são comumente referidos como “novas configurações familiares”. A antropóloga Heloísa Buarque questiona se realmente são “novas” e defende a ideia que essas organizações já existiam. A mudança que ocorre, segundo a autora, é quanto à visibilidade: estas ganham legitimidade no campo social e legislativo.

Se os aspectos que influenciam a formação de uma família são de naturezas diversas afetiva, social e econômica , como explicar para uma criança o que é uma família?

Alguns livros infantis trazem essa temática de forma não-diretiva e não-normativa, ou seja, são principalmente descritivos, nos convidando a entrar em contato com a diversidade. O fato de apenas descrever diferentes formas de ser uma família torna esses livros muito potentes, na medida em que permite que as famílias, ou educadores, possam se utilizar da leitura  de forma muito singular. Ou seja, pode ser uma leitura para introduzir o conceito de família de forma genérica, em uma proposta pedagógica por exemplo, ou para que os pais possam conversar com os filhos sobre como a família se formou, especialmente, aquelas que tiveram filhos através da adoção, casais homoafetivos e famílias monoparentais.

Todd Parr, autor do livro Somos um do outro: um livro sobre adoção e famílias, da Panda Books, brinca com a questão de como as famílias podem ter se formado: “Somos um do outro porque… você precisava de alguém para beijá-lo quando estivesse triste e nós tínhamos beijos para dar. Agora nós podemos andar de mãos dadas”. Ao longo do livro, o autor aponta desejos e necessidades afetivas que levaram pessoas a se unir formando uma família. As imagens apresentam variadas configurações familiares.

O grande e maravilhoso livro das famílias, escrito por Mary Hoffman e ilustrado por Ros Asquit, da Editora SM, tem informações mais objetivas e mostra um leque ainda mais abrangente de configurações familiares, tais como avós que criam os netos e enteados criados por madrastas/padrastos. Para além do mito da origem de cada família, os costumes familiares também são muito variados, como apresentados ludicamente pelas autoras. O reconhecimento social das variantes de arranjos familiares implica na alteridade, ou seja, no respeito às escolhas de cada um.

Texto escrito por Carla A. B. Gonçalves Kozesinski.

A Carla é psicóloga (USP), psicanalista, mestre e doutoranda em psicologia clínica (USP). Tem formação em acompanhamento terapêutico (Céu Aberto), aprimoramento multiprofissional em saúde mental (FAPESP) e pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar). Trabalhou durante nove anos na área da saúde mental e desde 2012 atua na Vara da Infância e Juventude. Foi membro fundadora do grupo Gesto-Rede Psicanalítica (2007-2016) e sócia da Ninguém Cresce Sozinho (2016-2018). Atualmente integra o Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da USP, atende em seu consultório na cidade de São Paulo e é coordenadora de serviços na Ninguém Cresce Sozinho.