É possível que você já tenha ouvido ou lido algo como: “os bebês precisam de mães suficientemente boas, eles não precisam de perfeição. É bem por aí mesmo, mas o que suficientemente boa quer dizer?

A expressão “mãe suficientemente boa” a que me refiro surgiu em 1949, quando Donald Woods Winnicott, pediatra, psiquiatra e psicanalista inglês e Isa Benzie, produtora da B.B.C de Londres, conversavam sobre as palestras radiofônicas de Winnicott à B.B.C. Foi quando ela  “pinçou a expressão mãe suficientemente boa” das coisas que Winnicott havia falado sobre os cuidados que as mães normalmente dirigem aos filhos. “Essa frase tornou-se um varal para pendurar coisas e ajustou-se à minha necessidade de escapar à idealização e também aos eventuais intentos de ensino e propaganda.” (Winnicott, D.W. Talking to parents. Cambridge, Massachusetts: Perseus Publishing 1993, p. XIV – a tradução é minha). Ainda hoje ela nos ajuda a escapar das idealizações da maternidade e das tantas imposições vindas de diferentes partes (desde outras mães, passando pelos saberes de especialistas e midiáticos).

Contudo, embora Winnicott tenha se apropriado desta expressão por orgulhar-se de tudo o que está implícito nestas palavras, o conceito de mãe suficientemente boa, desenvolvido ao longo de sua obra, é profundo e pouco óbvio. Winnicott aprofundou seus estudos sobre a natureza humana, voltado para a história das relações do indivíduo com seu meio ambiente; jamais teve a intenção de fazer uma teoria sobre as mães, tampouco reduzir a complexidade da maternagem a algo instintual – “(…) quando pensamos num instinto maternal nossa teoria se confunde e terminamos por perdermo-nos numa desordenada mistura de seres humanos e animais (…)” (Winnicott, D.W. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 22-23). Quando se desdobra a pensar a maternagem suficientemente boa, Winnicott está às voltas com as necessidades do indivíduo para constituir-se como sujeito.

Pois bem, então quais as características da mãe suficientemente boa?

Desta bondade “suficiente” fazem parte a espontaneidade e a pessoalidade da mãe no seu cuidado com o bebê.  Ela é suficientemente boa porque atende, ao bebê, na medida das necessidades deste, e não das suas próprias necessidades, como a de ser muito boa ou perfeita. Ela consegue esperar que o gesto espontâneo do bebê surja, porque ela entende que muitas coisas são sutis, como por exemplo, não se deve manusear um bebê de supetão, sabe que é mais importante respeitar a recusa do bebê de mamar do que forçá-lo, por disciplina (a mãe suficientemente boa sabe que “o não alimentar constitui a base do alimentar”. (Winnicott, D.W. Os bebês e suas mães, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.55). Seu envolvimento com os cuidados do bebê no início é total, mas esta devoção nada tem a ver com sentimentalismo ou instinto. Winnicott nos alerta para o fato de que qualquer sentimentalismo é pior que inútil, pois contém uma negação inconsciente do ódio e da agressividade, que são subjacentes a todo o esforço construtivo, mesmo quando se trata de criar um filho. Por vezes ela irá se sentir cansada, extenuada, vai odiar seu cotidiano, vai odiar seu bebê, mas não irá se vingar na criança.

A mãe suficientemente boa tem dúvidas sobre suas condutas, acredita que algumas coisas vão mal em virtude de algo que ela fez ou não fez. Ela falha, o tempo todo, e está continuamente corrigindo essas falhas.  E é justamente a somatória das falhas, seguidas pelo tipo de cuidados que as corrigem, que acaba constituindo a “comunicação do amor, assentada pelo fato de haver ali um ser humano que se preocupa.” (Winnicott, D.W. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 87).

Assim, o que estamos falando é que esta bondade não é indulgente; mas consiste essencialmente na capacidade da mãe de identificar-se com seu bebê, sem deixar de ser ela mesma.

Mas o que leva uma mãe a conseguir identificar-se com seu bebê?

Não se trata de um processo natural, tampouco instintivo. Para Winnicott a capacidade de se identificar com o outro é uma conquista do desenvolvimento emocional do indivíduo. Trata-se da capacidade que um indivíduo tem de sair do seu lugar, da sua referência e estar no lugar do outro, sem se perder. Não é uma fusão, é poder colocar “um pé no mundo do outro e manter o outro pé em seu próprio mundo”. Uma mãe é capaz de se identificar com o bebê como um adulto é capaz de se identificar com o outro, como um analista é capaz de se identificar com o paciente. Isto não tem nada de instintivo e natural; para alguém conquistar a capacidade de identificar-se com o outro, é necessário, no mínimo, ter conseguido alcançar a capacidade de se concernir, de se compadecer. Esta capacidade de identificação é o que está na base da maternidade para Winnicott.

Contudo, uma coisa é a identificação com o companheiro, amigo, filho de 10 anos, outra é com um bebê. Na fase inicial da vida, o bebê precisa de uma pessoa inteiramente devotada a ele (nem que por um período de tempo, a cada dia), o que pode ser extremamente difícil. Porém, esta dedicação em geral é possível porque as mães comumente entram em um estado especial, de sensibilidade extrema que se inicia no final da gravidez e termina após os primeiros meses de vida, ao qual Winnicott denominou preocupação materna primária.

Este estado de preocupação materna primária coloca a mãe, especialmente no primeiro mês de vida do bebê, em uma situação e vulnerabilidade e insegurança extrema, uma sensação de desamparo talvez tão grande quanto ao do bebê (se este pudesse explicar seus sentimentos!). E justamente esta situação especial em que se encontra é que irá auxiliar a mãe a ir se adaptando ao tempo, gesto e necessidade específicos daquele bebê. Contudo, para que a mãe possa de fato entrar neste estado especial ela precisará ser amparada e cuidada – poupada até de ter que ocupar-se das coisas do mundo externo durante neste início de vida do bebê. Ela precisará se sentir segura em seu ambiente, compreendida e acolhida por aqueles que estão ao seu redor. A mãe precisa de “recursos ambientais que estimulem a confiança em si própria” (Winnicott, D.W. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.22). Aqueles que estão ao lado da mãe deverão ter seu olhar atento, a respiração calma, respeitar os silêncios, choros, atender as necessidades mais sutis e delicadas. Se a mãe se sentir ameaçada, invadida, ou negligenciada e abandonada, poderá perder-se neste estado de identificação com o bebê, ou ficar totalmente externa e impessoal ao bebê. E aí, temos o risco de comprometer sua “bondade suficiente” e, por consequência, o desenvolvimento psíquico do bebê. Invistamos nas redes de apoio!

Imagem: Pixabay.

Texto escrito por Patrícia Piva Amaro.

A Patrícia é psicanalista, com pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar). É também formada em direito (Mackenzie), pós-graduada pela FGV e MBA (Universität Wien, Áustria). Embora imersa por mais de quinze anos no mundo do direito, a psicanálise, e principalmente seus desdobramentos quanto à Ética do cuidado, sempre lhe despertava interesse. Entre 2008-2011 acompanhou os trabalhos de obstetras, doulas e clínicas pediátricas na Áustria e Holanda. Em 2012 iniciou sua formação em psicanálise no IBPW (Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana) e em 2015 encerrou sua carreira de advogada para iniciar a de psicanalista e disseminadora dos ensinamentos de Winnicott. Em sua clínica na cidade de São Paulo, além de atendimentos individuais, desenvolve trabalhos em grupo mesclando literatura e estudos da teoria winnicottiana.