Desde seu início a Ninguém Cresce Sozinho é procurada por mães e pais de crianças que estão “emperradas” no processo de desfralde. Por esse trabalho, já fomos denominadas consultoras de desfralde, um “apelido” que, apesar de carinhoso, não nos cabe bem, mesmo quando ele é realizado em uma ou poucas consultas.

As consultorias de desfralde (como as de sono, alimentação, entre outras) em geral apresentam “técnicas” para a instalação do comportamento esperado. Numa espécie de “treino”, partem do princípio de que há algo a ser ensinado/aprendido. Neste sentido, tanto o “saber” vem de um agente externo, quanto há um reforço, ainda que não intencional, da ideia de que se um dado comportamento não está sendo alcançado é porque alguém está fracassando em ensinar e outro alguém em aprender. Assim, reproduz a mesma lógica que opera em nossos tempos, do pouco espaço para reflexões e expectativa de respostas imediatas e certeiras.

Nosso trabalho também tem por objetivo alcançar o desfralde total da criança. Contudo, a orientação a pais, tal como a compreendemos e realizamos, não pressupõe um “saber” prévio nosso sobre a situação em questão, nem acontece na direção de um passo a passo a ser seguido. Ao invés de oferecermos “técnicas” para a mudança de comportamento, colocamos uma lupa sobre o sintoma apresentado pela criança, analisando-o junto com os pais.

Com muita frequência, estes descrevem um desfralde bem-sucedido até determinado momento da vida da criança ou parcialmente bem-sucedido, com o xixi no vaso e/ou desfralde noturno. As situações de encoprese (incontinência fecal), retenção de fezes ou evacuação voluntária na calcinha/cueca ou fralda (seja durante ou após o sono, seja a pedido da criança em vigília) prevalecem em relação às de enurese (escapes de urina). Nos casos em que as crianças já ultrapassaram os 34 anos, não é incomum os pais relatarem que em algum momento foram orientados a não se preocupar com a situação, pois cada criança tem seu tempo.

Não há dúvida de que cada criança tem seu tempo, mas, independentemente da idade, uma criança que segurava o xixi e começa a deixá-lo “escapar”, de dia ou durante a noite, ou que faz xixi no vaso/penico, mas não consegue o mesmo para o cocô (e não apresenta nenhuma causa orgânica em ambos os contextos), é uma criança que, do ponto de vista neurofisiológico, tem condições para urinar e evacuar nos lugares designados por nossa cultura. Então, a pergunta que se faz nessas circunstâncias é: a serviço do que está cada um desses sintomas, em cada criança e família em particular?

Embora o desfralde só se torne possível a partir da maturidade neurofisiológica da criança, não podemos esquecer que ele é um processo também relacional, que revela como a criança é colocada e se coloca no mundo e em suas relações. Deste modo, quando ele não chega ao fim é preciso olhar para o des-envolvimento da criança; ou seja, para seus movimentos de separação. Não nos parece coincidência que os escapes e as retenções – separações e não-separações – se apresentem como os principais sintomas de um desfralde inconcluso, bem como as dificuldades com a alimentação e o sono caminhem muitas vezes em paralelo com as dificuldades no desfralde. Afinal, tanto na recusa/restrição alimentar quanto na dificuldade para dormir [sozinho], sono interrompido, etc.,  separação, e portanto, autonomia e  independência, também estão em jogo.

Na orientação a pais, conforme endereçamos aos pais perguntas para conhecer um pouco mais a criança e a dinâmica familiar, ao mesmo tempo em que eles podem olhar para seus filhos “um pouco de fora” da relação, o desfralde deixa de ser o único, e por vezes principal, foco. E esse é um ponto de virada fundamental, pois o desfralde deixa de ser o problema e passa ser a via de revelação de um conflito que, na grande maioria das vezes, envolve separação. Nomear esse conflito e trabalhar sobre ele, quase sempre só com os pais, é o que viabiliza, na nossa experiência, a saída definitiva das fraldas.

Se entendemos autonomia e independência como fazer coisas sem ajuda, dizemos que uma criança por volta dos 23 anos é autônoma e independente porque faz coisas que já é capaz de fazer sozinha, como por exemplo, andar, se alimentar ou se vestir. Contudo, quando nos referimos à autonomia e independência necessárias ao desenvolvimento infantil não nos limitamos apenas aos fazeres, que podem ser muitos (inclusive com excelência), mas incluímos e destacamos a condição psíquica de  imaginar, criar, pensar, desejar e escolher por si mesma; a condição de ser autora da própria vida!

O que a clínica nos mostra é que a recusa ao vaso/penico, assim como ao alimento ou a dormir, regularmente é uma recusa da criança ao lugar de “extensão” do adulto. Isto é, ao lugar de ter que imaginar, criar, pensar, desejar, escolher conforme esperam, ainda que inconscientemente, seus adultos de referência. Nesses casos, o desfralde, ao mesmo tempo em que sinaliza um pedido de ajuda, acaba se tornando um trunfo nas mãos da criança, já que é impossível alguém de fora controlar seu desejo – que seja, de urinar e evacuar.  

Quando não há espaço para a criança se fazer e ser ela mesma, o momento de deixar as fraldas pode revelar um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento sob o ponto de vista psíquico: a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de se separar. Portanto, se o desfralde emperrou, é hora de olhar para a relação.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

Para mais reflexões e informações sobre desfralde, participe da roda de conversas desfralde sem atropelos ou agende uma consulta de orientação a pais.