Quem tem o hábito de ler para crianças já deve ter se surpreendido com boas conversas disparadas pela leitura. Afinal, tanto os textos quanto as ilustrações dos livros infantis têm a potência de despertar o adormecido, tocar no intocado, dizer sobre o indizível, permitindo um diálogo consigo mesmo e com o mundo. Por esta razão, os livros infantis podem ajudar, e muito, a criar um canal para que crianças e adultos possam falar sobre temas difíceis ou pouco falados, como a sexualidade.

Embora esse recurso seja valiosíssimo, muitas vezes ele é subutilizado. No que se refere à sexualidade, acredito que isso se deve ao fato de o adulto não suportar as associações e inquietações trazidas pela criança a partir da leitura, vez que elas invariavelmente esbarram nas vivências, dúvidas e angústias daquele que lê para os pequenos. Não por acaso que, diante das manifestações sexuais infantis  (perguntas, brincadeiras sexuais, etc.), muitos adultos “engasgam”, “perdem o chão”, desconversam, ralham.

Além das manifestações sexuais infantis reavivar os aspectos mais sombrios da sexualidade do adulto, observo que muitas das caraminholas e confusões que giram ao redor deste tema têm a ver com a equivocada ideia de que “falar sobre sexualidade com crianças é estimulá-la para o sexo”. Resultado disso: o assunto fica velado ou silenciado, tal qual observamos com os livros infantis sobre a sexualidade humana, que quase sempre ficam “escondidos” nas livrarias e bem longe das estantes dos lares e escolas.

A grande maioria dos educadores que já conheci justificam a ausência desses livros na escola por compreenderem que sexualidade é um assunto para se tratar “em casa”, a fim de evitar que haja desencontro entre o que é dito no ambiente familiar e no escolar. Ao mesmo tempo, muitas famílias, por não saberem como lidar com o tema, esperam que a escola se responsabilize por abordá-lo. Nesse bate bola família-escola, as questões das crianças continuam pulsando, muitas vezes sem que sejam escutadas e acolhidas ou mesmo sem que possam ser vividas no âmbito das descobertas, das diferenças, do respeito, da afetividade e do prazer.

Para que possamos fazer uso de livros infantis sobre a sexualidade humana (pouquíssimos, aliás, principalmente se considerarmos aqueles que realmente merecem a leitura), precisamos primeiramente desfazer alguns equívocos, quer sejam:

  1. Sexo e sexualidade não são sinônimos, embora o primeiro faça parte da segunda. Sexo, como diz Rita Lee em Amor e Sexo, “é aquilo e coisa e tal e tal e coisa”. Traduzindo, sexo envolve o desejo do encontro corporal/genital, que só é despertado (ou deveria ser) a partir da adolescência. Sexualidade pode ser definida como energia vital, expressão da afetividade e do prazer, daquilo que nos move para a vida. Ela é a base da curiosidade; portanto, do conhecimento.
  2. O que erotiza (estimula) a criança é o acesso a conteúdos eróticos, que fazem parte da sexualidade do adulto e, portanto, são (ou deveriam ser) “inapropriados aos menores”. Aqui, vale a nota: livros infantis não apresentam tais conteúdos!
  3.  As principais perguntas feitas pelas crianças sobre a sexualidade pedem respostas objetivas e pautadas na ciência. Se a escola é lugar de transmissão de conhecimento, então é, ao meu ver, lugar de abordar a sexualidade – ainda mais porque quando uma pergunta não é respondida, a criança recebe como resposta que suas formulações não têm valor. Se não valem, como poderão aprender?

Mamãe botou um ovo, de Babette Cole (Editora Ática) é um clássico da literatura infantil. Além de ser um dos primeiros títulos a abordar o tema de modo leve e divertido (a primeira edição brasileira é de 1996), explicita que os donos das caraminholas são os adultos (no caso, os pais) e não as crianças. Estas, apenas tecem e contam suas hipóteses sobre a origem dos bebês e o que os pais “fazem na cama”, independente de terem presenciado uma cena sexual.

Quando as crianças lançam suas perguntas, querem confirmar suas teorias, reconstruí-las; também, querem saber o quanto podem confiar naquele adulto a quem ela endereça suas questões – em geral, e não por acaso, os pais e professores. Então, retomo o ponto: é possível o tema ficar do lado de fora dos lares e da escola? A grande questão é de que maneira isso deve ser feito (o que não cabe abordar neste momento).

O livro ainda nos lembra que a explicação, que na estória mais parece uma embromação, não é um bom caminho para falar sobre sexualidade, especialmente quando ela vem com explanações fantasiosas! A criança quer respostas claras, objetivas e verdadeiras. Então, por que um livro que “não fala a verdade” sobre o modo como meninos e meninas são feitos deve compor as bibliotecas infantis? Porque a tarefa de falar verdades não cabe necessariamente aos livros, mas obrigatoriamente aos adultos responsáveis pelas crianças. E porque, um livro que brinca, autoriza todos a brincar, tornando mais amena a expressão daquilo que um tema, por vezes árduo, suscita.

Uma vez que um livro brinca com um tema tão cheio de atravessamentos quanto é o da sexualidade, ele nos apresenta novos referenciais, ampliando nossas possibilidades de escuta, diálogo e intervenção junto às crianças. É o caso de Deus me livre! (Companhia das Letrinhas). Escrito por Rosa Amanda Strausz e ilustrado por Myrna Maracajá, lança, já na capa, a popular expressão que pede o livramento daquilo que parece sem saída, tal qual nossas ações frente às manifestações sexuais infantis.

Com muita elegância e brincadeira, a obra aponta com primazia que, ainda que muitas famílias (e escolas) optem falar sobre a origem da vida pela via do criacionismo, não temos como omitir dos pequenos investigadores que um bebê sempre é feito (até que isso mude, se é que isso será possível) por um óvulo e um espermatozoide. Essa verdade sempre será temperada pelas fantasias de cada criança. Se conseguimos escutá-las ao invés de nos paralisar, além de umas boas risadas, certamente responderemos às questões da criança com mais suavidade, incluindo na pauta das conversas com crianças um tema que não fala apenas sobre a origem dos bebês e as diferenças sexuais, mas sobretudo de conhecimento e respeito ao próprio corpo (por consequência, o corpo dos outros), afeto e prazer.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

Para mais reflexões sobre este tema, participe da roda de conversas sexualidade na infância: do esperado a possíveis riscos, ou agende uma consulta de orientação a pais.