Recentemente assisti a dois vídeos que trazem um diálogo sem rodeios com a criança quando o assunto é abuso (sexual, no primeiro, e incluindo abusos de outras naturezas, no segundo), tanto na prevenção quanto na denúncia. São eles:

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=sEpqTs7syOc[/youtube]

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=6zoCDyQSH0o&feature[/youtube]

O primeiro me foi apresentado pela mãe de uma menina de 5 anos, que questionava quão criacionista, excessiva e direta era a mensagem para uma criança nesta faixa etária. De fato, nem todas as famílias educam seus filhos partindo do princípio de que o mundo foi criado por Deus, o que faz com que o enredo religioso fique vazio de sentido para tais famílias. A repetição maciça de algumas falas, por melhor que sejam, não garante que a criança compreenderá aquilo que lhe é comunicado, ainda mais quando precisa dispender um esforço extra para processar várias informações de uma só vez.

As informações sobre abuso sexual precisam ser claras, objetivas e constantes. No vídeo referido, um entre tantos outros que circulam por aí, diz que só a criança pode mexer em suas “partes íntimas”. No entanto, embora defina o conceito, não nomeia tais partes (pipi, pinto, xoxota, pepeca, bumbum, bunda, etc.), nem diz que alguns adultos podem “mexer” nestas partes do corpo da criança nos momentos de higiene enquanto ela ainda não adquiriu autonomia suficiente para cuidar de si sem ajuda. Ou, comunica que o silêncio precisa ser rompido (“conte para alguém”), sem fazer menção sobre quem pode ser este “alguém”: pessoas ou instituições da confiança da criança ou que defendam seus direitos.

O segundo vídeo integra uma campanha (de 2013) da Fundación ANAR (Ayuda a Niños y Adolescentes en Riesgo), uma organização sem fins lucrativos sediada na Espanha que se dedica à promoção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes em situação de risco e desamparo em seu país sede, México, Peru e Colômbia. O anúncio tem o brilhantismo de conseguir atingir, ao mesmo tempo, agressor e agredido com mensagens valiosas e distintas, uma vez que abusador e vítima quase sempre estão muito perto.

“Perto”, pode ser traduzido não apenas pela proximidade afetiva ou física, mas principalmente pela indiscriminação psíquica do adulto que faz da criança uma “extensão” sua, um “bichinho de pelúcia” com o qual ele faz o que bem entender, já que não reconhece que a criança é um sujeito que tem desejos e necessidades próprias. A criança, por sua vez, acaba ocupando um lugar de submissão, abuso, sexual ou não.

Estatísticas pelo mundo afora revelam que o abuso sexual e outras formas de violência acontecem em todas as classes sociais e, na grande maioria dos casos, dentro da própria casa, por pessoas conhecidas e da confiança da criança, e não apenas por estranhos. Logo, o limite entre o que é abuso e o que é carinho às vezes se confunde, dificultando a consciência da criança do ato abusivo e, portanto, da necessidade de pedir ajuda. Pfeiffer e Salvagni nos mostram isto com primazia:

O agressor usa da relação de confiança que tem com a criança ou adolescente e de poder como responsável para se aproximar cada vez mais, praticando atos que a vítima considera inicialmente como de demonstrações afetivas e de interesse. Essa aproximação é recebida, a princípio, com satisfação pela criança, que se sente privilegiada pela atenção do responsável. Este lhe passa a ideia de proteção e que seus atos seriam normais em um relacionamento de pais e filhas, ou filhos, ou mesmo entre a posição de parentesco ou de relacionamento que tem com a vítima.

As abordagens, que se tornam cada vez mais frequentes e abusivas, levam a um sentimento de insegurança e dúvida, que pode permanecer por muito tempo, na dependência da maturidade da vítima, de sua estrutura de valores e conhecimentos, além da possibilidade ou não que teria de diálogo e apoio com o outro responsável, habitualmente favorecedor, consciente ou não, da violência.

Quando o agressor percebe que a criança começa a entender como abuso ou, ao menos, como anormal seus atos, tenta inverter os papéis, impondo a ela a culpa de ter aceitado seus carinhos. Usa da imaturidade e insegurança de sua vítima, colocando em dúvida a importância que tem para sua família, diminuindo ainda mais seu amor próprio, ao demonstrar que qualquer queixa da parte dela não teria valor ou crédito. Passa, então, à exigência do silêncio, através de todos os tipos de ameaças à vítima e às pessoas de quem ela mais gosta ou depende. O abuso é progressivo; quanto mais medo, aversão ou resistência pela vítima, maior o prazer do agressor, maior a violência. (Pfeiffer, L. e Salvagni, E.P. Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência. In: Jornal de Pediatria, vol. 81, n° 5 Sup, 2005, p. S199)

É por isso que a situação de abuso sexual só finda mediante medidas de proteção à vítima, denúncia contra o agressor e, sobretudo, em se tratando de abuso intrafamiliar, oferecendo à família suporte psicossocial que a permita mudar uma dinâmica desenhada por relacionamentos com limites (psíquicos e corporais) pouco definidos.

Embora a ocorrência de violência sexual seja mais comum nas famílias em que um de seus integrantes (adulto ou adolescente) tenha sofrido abuso sexual na infância, não podemos ignorar que o inimigo pode estar em outros ambientes. Não é incomum o relato de crianças que presenciam na casa de amigos, vizinhos e parentes, situações que envolvem apresentação de material pornográfico ou brincadeiras com contato físico íntimo com adolescente ou adulto, atitudes consideradas violência sexual tanto quanto o voyeurismo, o exibicionismo e ato sexual (com ou sem penetração). Isto posto, a única forma de proteger as crianças do abuso sexual é construindo conjuntamente com ela a ideia de intimidade, privacidade e respeito.

Esta tarefa deve começar bem cedo, já com os bebês, aos quais devemos anunciar e pedir licença no momento de limpeza de seus genitais e bumbum, como forma ir ensinando que tais contatos têm por finalidade a higienização. Por volta dos 2-3 anos, quando a criança começa a perceber as diferenças sexuais e a querer explorar seu próprio corpo e o corpo do outro, é fundamental reafirmar que o corpo dela é só dela, bem como o do outro é somente do outro, conversando sobre quais situações as partes íntimas podem ser tocadas por outra pessoa – higiene e exame médico (na presença de um adulto responsável). Nesta idade, é possível anunciar que quando ela for maior e conseguir se limpar ou se banhar sozinha, já não será mais necessário que tais e tais pessoas (nome de quem exerce esta tarefa) a ajude. Assim, a criança vai entendendo que num momento próximo de sua vida somente ela estará autorizada a tocá-la intimamente.

A conversa sobre as partes íntimas deve acontecer nos momentos em que o corpo está em questão para que não se transforme num discurso de permissões e proibições, que coloca medo, assusta e inibe o contato saudável e necessário com as pessoas de seu convívio familiar e social. Tal conversa não tem como intuito inibir a pesquisa sexual das crianças, manifestada, por exemplo, através das brincadeiras sexuais infantis com outras crianças dentro da mesma faixa de idade. Nestas situações, cujo ápice se dá entre os 3 e 6 anos, é bastante comum a criança perguntar se pode brincar com o corpo do(a) amigo(a). Por mais que exista exploração entre as crianças (e entre as da mesma idade esta investigação é esperada), é importante frisar que não brincamos com genital, ânus, nádega, mama e boca de outras pessoas, assim como não podemos permitir que elas (qualquer pessoa, e não apenas as estranhas!) brinquem com estas partes de nosso corpo. O limite eu-outro precisa estar bem claro para que a criança possa se defender das situações mais comuns de abuso: as que vão acontecendo “como quem não quer nada” e se intensificam em número de ocorrências e grau de contato íntimo.

Precisamos ressaltar à criança que se alguém tocá-la ou tentar tocá-la em seus genitais ou ânus é preciso que ela saia de perto, grite, peça ajuda e conte o que aconteceu para um ou mais adulto de sua confiança (nem sempre o primeiro adulto que a criança busca para compartilhar o ocorrido tem “ouvidos de ouvir”), mesmo que ela tenha medo, dúvida ou tenha sido solicitada a manter-se em silêncio. Vale lembrar nesta e em outras oportunidades que existe sim “pessoas más” – que roubam criança, matam, gostam de brincar com as partes íntimas das crianças ou pedir para que a criança brinque com as dela. Se esta informação vem na forma de conversa, ela funciona como alerta e não alarme.

Aqui, faço um parêntese em relação ao primeiro vídeo, ou a qualquer outro material que seja apresentado sem nenhuma conversa anterior e sem que um adulto esteja disponível para conversar com a criança sobre eventuais questões que ela queira colocar. Um vídeo “jogado” pode ficar sem sentido para a criança ou deixá-la acuada, receosa em estar com as pessoas. O medo paralisa, impede viver e não ajuda a pensar e tomar atitudes que possam ser indispensáveis. Este é um dos motivos pelos quais não devemos permitir que crianças pequenas acessem a internet sem a presença de um adulto.

Acrescento, ainda, que quando um responsável pela criança – mãe, pai, avós, outros familiares, educadores ou cuidadores – tenha sido vítima de abuso sexual, é importante que ele busque um espaço de escuta para que sua dor possa ser (re)significada, evitando, desse modo, tanto a repetição da violência familiar (nos casos de abuso intrafamiliar) quanto o aprisionamento a uma fantasia que pertence ao adulto, mas que tem um efeito importante e perigoso para a criança. Duas situações comuns (e aparentemente opostas) em que a fantasia do adulto recai sobre a criança são: 1) a superproteção (por exemplo, o adulto proíbe a criança de ir na casa de amigos ou ser cuidada por terceiros na tentativa de impedir, mesmo que não haja riscos, que ela tenha uma experiência semelhante à sua), e; 2) os “olhos cegos”, que deixam de olhar para possíveis riscos para não ter que se deparar com as vivências que a situação lhe desperta/despertou. Nunca é demais frisar: manter a criança “colada” pode ser tão prejudicial para seu desenvolvimento quanto negligenciar cuidado e proteção.

Proteger a criança contra o abuso sexual é dar-lhe condições de reconhecer e dizer até onde o outro pode estar em contato com seu corpo. Há crianças que não gostam de receber beijos, abraços, apertinhos. Isto precisa ser respeitado. Há crianças que têm autonomia suficiente para cuidar do seu próprio corpo sem ajuda. Isto precisa ser respeitado. Há crianças que dormem muito bem sozinhas. Isto precisa ser respeitado. Há crianças que adoram se esparramar no sofá sem ninguém “grudado” nela. Isso precisa ser respeitado. Há crianças que contam pesadelos assustadores. Isto precisa ser escutado. Há crianças que desenham genitais, atos sexuais “sem nunca terem presenciado um”. Isto precisa ser escutado. Há crianças que não querem estar junto de determinadas pessoas. Estas e muitas outras situações semelhantes precisam ser escutadas e respeitadas. Quando não são, mais do que desrespeito, o que se coloca em cena são formas de abuso em relação ao corpo da criança, porta aberta para que o abuso sexual aconteça.

Quando o respeito pelo corpo da criança e a escuta do que ela tem para dizer acontece dentro da própria casa, a criança terá mais condições de colocar uma barreira entre seu corpo e o corpo do outro. A prevenção do abuso começa em casa, com atitudes simples, que, sem sombra de dúvida, terão muito mais efeito do que qualquer material que a ensine como se proteger. Se para os pais há dificuldade em estabelecer este limite, é hora de procurarem ajuda, antes que possa ficar tarde demais para a criança e para a família.

Nota: Este texto, publicado pela primeira vez em 20/05/2013 no antigo blog Ninguém Cresce Sozinho, foi revisado e alterado em seu conteúdo original pela autora.

Imagem: Google.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

Para mais reflexões sobre este tema, participe da roda de conversas sexualidade na infância: do esperado a possíveis riscos, ou agende uma consulta de orientação a pais.