Quando, enquanto psicanalistas, nos deparamos com um caso em que uma criança apresenta sinais de risco para o desenvolvimento, como um atraso motor ou na linguagem, dificuldade de contato com os outros e, ao mesmo tempo, apresenta também um diagnóstico orgânico, seja ele “bem” delineado, como uma galactosemia tipo 1 (a ser definida mais adiante), ou um diagnóstico inconclusivo que pode ou não explicar, por exemplo, porque a criança ainda não adquiriu o tônus muscular, como fazer um diagnóstico diferencial?

Muito se fala em diagnóstico diferencial dentro das diferentes áreas da saúde, como a medicina e a psicologia, e dentro de suas especialidades e distintas abordagens; porém as publicações, estudos e formações acerca da intersecção entre as consequências de uma doença orgânica e os sinais de risco psíquico apresentados por uma mesma criança são mais escassos. Até onde o quadro orgânico influencia o desenvolvimento da fala, o desenvolvimento motor, as capacidades de socialização, entre outros aspectos, e até que ponto os marcos do desenvolvimento não alcançados pela criança dizem de sua constituição e recursos psíquicos?

Esses quadros, nos quais as fronteiras entre o orgânico e o psíquico ficam (ainda) menos estabelecidas, são também afetados pelo fato de o acompanhamento da criança ser feito em diferentes serviços de saúde e instituições que nem sempre comunicam entre si, e que muitas vezes propõem tratamentos e intervenções radicalmente diferentes, provocando muita angústia nos responsáveis pela criança.

Todavia, é importante apontar que, embora tal angústia e a diversidade de opiniões e pareceres profissionais estejam presentes em qualquer investigação médica ou psicológica, nos casos de crianças de famílias em vulnerabilidade social elas trazem alguns agravantes particulares que merecem nossa atenção.

Para ilustrá-las vamos nos basear num exemplo “fictício”, apesar de ser construído a partir de (muitos) fatos reais. Voltemos ao diagnóstico de galactosemia tipo 1 em linhas gerais (existem vários tipos dessa doença), ela consiste na não metabolização pelo organismo da galactose (um tipo de açúcar) que é encontrada no leite (seja ele materno, bovino, cru, processado, etc.) e em alguns outros alimentos como certas frutas, podendo gerar como consequência da ingestão desses alimentos problemas renais, hepáticos, oculares (catarata) e neurológicos. Apesar de ser uma doença hereditária, e sem cura, existe tratamento; por isso, quanto antes for detectada, melhor.

Uma família em situação de vulnerabilidade, pela falta de acesso à informação, filas de espera para atendimento, falta de profissionais, entre outros fatores, tem menos chances de ter essa doença detectada precocemente, o que pode provocar, como apontado acima, algumas sequelas no desenvolvimento.

É neste ponto que nos deparamos com a complexidade do quadro clínico. Vamos supor que uma criança, até ter esse diagnóstico detectado por volta de seus 18 meses, já vinha apresentando dificuldades visuais que, apesar de estarem sendo investigadas, já fizeram com que seus responsáveis, e muitas vezes demais familiares e profissionais, deixassem de estimulá-la. Por quê? Porque podemos imaginar que apresentar o mundo à um bebê que não pode enxergar é muito mais que uma atividade corriqueira que se produz de forma natural como quando brincamos com um bebê nomeando partes de seu corpo, ou quando mostramos um brinquedo, ou um cachorro na rua. Isto é, exige que inventemos estratégias, que busquemos orientação específica. E ainda, do ponto de vista motor, neste caso, além da estimulação inicial necessária para que qualquer bebê desenvolva seu tônus muscular, sua capacidade de se equilibrar, entre outros, um bebê com dificuldades visuais não pode contar com o auxílio desse sentido; é possível inclusive que poucas pessoas se dirijam a este bebê, convidando-o a se comunicar e a interagir, o que afeta diretamente o desenvolvimento da linguagem e a socialização.

Em paralelo a isso, o bebê terá também problemas digestivos pois provavelmente, até ser detectada a doença, vai ingerir alimentos que não poderia, sendo assim levado ao pronto socorro com frequência. É provável que à esta altura ele não frequente a creche, seja por recomendação médica ou por receio dos responsáveis, afinal, seu estado de saúde é delicado, não pode comer qualquer coisa e precisa de uma atenção maior em função de sua visão. Tudo isso implica que, a entrada na creche ou escola, dependerá da detecção da doença, a qual pautará algumas orientações aos educadores, fazendo com que mais uma fonte de estimulação importante na primeira infância seja postergada.

O bebê agora já é uma criança pequena que fica restrita aos cuidados exclusivos dos responsáveis. Estes, em função de suas demais necessidades trabalho, outros filhos, arrumação da casa e assim por diante – poderão, como comumente acontece, deixá-la no berço (para não correr o risco de se machucar) ouvindo algum desenho no celular ou na televisão.  

Mais tarde, quando a criança entrar na creche após alta médica, provavelmente já estará operada da catarata, ainda que não necessariamente terá recuperado 100% da visão, e terá uma série de “choques” de realidade. Começando pelo fato de se encontrar num ambiente muito diferente do de sua casa onde a rotina girava ao seu redor e onde as regras e combinados eram outras ou mesmo inexistentes.

Até aí, vocês podem pensar, nada muito distinto da experiência de todas as crianças ao ingressar na creche, mas, se somarmos a isso a particularidade de que essa criança, diferente das outras, terá recursos e instrumentos mais precários para lidar com as adversidades desse novo mundo, afinal se as demais crianças andam com desenvoltura, enxergam bem, se expressam através de algumas palavras e foram sendo estimuladas nesses sentidos aos poucos, a de nosso exemplo não. Claro que cada criança tem seu ritmo, o que faz com que cada uma tenha uma habilidade mais ou menos desenvolvida, mas o fato é que para esta criança em questão, o investimento nas diversas direções de sua autonomia foi prejudicado pela preocupação constante de seus pais com seu estado de saúde, vendo-a como um ser frágil e dependente, e não como alguém dotado de potencialidades. De novo, é preciso lembrar que essa é uma caricatura (nem sempre) escrachada da situação.

Desse modo, é provável que tanto a criança quanto sua família demandem mais a atenção dos educadores, provocando nos mesmos angústia, pena, empatia, raiva, sensação de impotência e por aí vai. É que a criança não responde às propostas, bate a cabeça na parede sem motivo (aparente), não responde aos combinados, chora ininterruptamente, além de exigir cuidados que já não condizem com sua faixa etária e que, por tanto, não são comportados dentro da estrutura de sua sala de aula, tanto física quanto logisticamente.  Por exemplo: ser trocada enquanto todas as crianças já saíram das fraldas, demandando que um dos educadores responsáveis deixe a classe para ir trocá-la num trocador, ou ela terá que comer diretamente acompanhada por ter uma alimentação específica, sendo imprescindível um educador à sua disposição neste momento, entre outras condições).

Pelo despreparo dos educadores, que de fato não foram instrumentalizados para tal situação, é comum que se recorra à justificativa de que “ela é assim em função das sequelas neurológicas de sua doença”. Será? Ou será que é “só “ por isso?

E quem vai dizer que não? Os médicos, que também em sua formação dificilmente são contemplados nas questões psíquicas do desenvolvimento infantil, é que não! E quem tem coragem de contra argumentar um médico? E, se e quando, essa criança chega a um psicólogo que por sua vez não possui a formação médica, além de desconhecer o contexto social da família e as consequências dessa vulnerabilidade para o desenvolvimento infantil,  sugere à mãe que além do outro diagnóstico, seu filho é autista?

Temos então a fórmula “perfeita”, e sobretudo desastrosa, para que a criança  corresponda a todos esses diagnósticos, confirmando-os a todos os profissionais envolvidos em seu cuidado, bem como a seus pais, que por sua vez o verão sob esse olhar reducionista num ciclo vicioso que se retro alimenta. Como sair disso então?

Um primeiro e valioso passo é trabalhar sempre apostando nas potencialidades da criança e sua família, mesmo que à princípio elas não estejam aparentes. Apostar na criança significa poder enxergá-la para além de seus diagnósticos enquanto um sujeito em desenvolvimento que, como todos, precisa ser estimulado. Ao mesmo tempo, apostar na família significa ajudá-la também a ver a criança sob outras perspectivas, o que torna fundamental escutar e acolher suas angústias para que seus membros tenham espaço interno para investir na criança.

Essa postura visa abrir brechas na relação entre pais e filhos que tragam o benefício da dúvida diante de algumas afirmações e prognósticos que costumam ser ouvidos de maneira negativamente tendenciosas ou enquanto verdades absolutas. Por exemplo, quando um profissional diz “dificilmente seu filho irá andar” é fundamental ajudar a família a entender que tal afirmação não equivale a “seu filho não vai andar”.

No campo da educação também é importante manter o olhar dos educadores para a criança sempre em suspensão, auxiliando-os a pressupor intenção em alguns comportamentos da criança para que afirmações dêem espaço para questões. Isto é, ao invés de afirmar que a criança bate a cabeça na parede “do nada”, poder se perguntar: “Por que a criança precisa bater  a cabeça na parede? Em que situações isso acontece? O que será que ela quer dizer com isso?”

Vale ressaltar que há de se considerar também o risco de se cair no outro extremo, onde se ignora absolutamente as dificuldades e limitações da criança, sejam as impostas pelos diagnósticos, sejam as impostas pelas adversidades sociais, demandando e esperando mais do que ela pode nos oferecer. Essa medida é delicada e não há receita para uma escuta profissional que inclua ambas as perspectivas: da aposta e da consciência das limitações. Entendo que é neste ponto que o diagnóstico diferencial pode incidir.

Nesse sentido, o diagnóstico diferencial pode servir como pano de fundo que auxilie a direção do tratamento, os profissionais a serem envolvidos, as propostas específicas de intervenção e assim por diante. Enquanto psicanalista, seja no consultório particular, em instituições e organizações públicas ou privadas, temos, a meu ver, a obrigação de construir rede – de nos comunicarmos com os demais profissionais que cuidam da criança – para trocar nossos saberes, ampliar nossa escuta e alinhar a comunicação com a família. Além disso, é importante nos aprofundarmos no contexto social familiar, buscando compreender as implicações práticas que este tem nas possibilidades da família para que nossas intervenções lhes façam sentido, principalmente se não podemos contar totalmente com a estrutura pública, seja na área da saúde ou na área da educação.

Imagem: Google.

Texto escrito por Silvia Bicudo.

A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.