Quando vemos um bebê pegando um objeto, sentando sem apoio, engatinhando, ou uma criança correndo e pulando, temos a impressão de que as conquistas motoras se dão naturalmente através do crescimento infantil. Todavia, o desenvolvimento motor não está garantido pela passagem dos anos, nem atrelado apenas às faixas etárias, como estamos acostumados a pensar e, muitas vezes, encontrar em manuais sobre a primeira infância.

Classificações por faixa etária, através dos marcos do desenvolvimento infantil, são importantes enquanto referências do ponto de vista daquilo que é esperado da maturação do sistema nervoso central, o principal responsável por essa habilidade. No entanto, o desenvolvimento motor não depende apenas dos fatores neurofisiológicos, mas também da constituição psíquica da criança, que por sua vez é sempre atravessada pelo ambiente no qual ela está inserida.

Então, como é que todas essas variáveis interagem entre si, resultando nas aptidões motoras que permitem, por exemplo, que nos movimentemos com equilíbrio e desenvoltura, capacidade essa que nos parece tão automática depois que se estabelece?!

Comecemos por pensar que quando um bebê nasce, sua sobrevivência está totalmente submetida aos cuidados de terceiros – a começar pelo próprio nascimento, quando ele depende completamente das condições maternas (e do suporte que a mãe obtém, seja do companheiro, da doula, da equipe médica, etc.). Mais ainda, quando o bebê sente qualquer tipo de desconforto que ele mesmo não sabe identificar fome, frio, cólica, angústia, entre outros é o adulto cuidador que, por suposição, tenta apaziguar o desconforto através do leite, agasalho, massagem, colo, etc. Ou seja, em um primeiro momento, dada essa condição de dependência, para o bebê não existe uma diferenciação entre ele próprio e os outros ao seu redor; todos funcionam como uma espécie de extensão daquilo que ele sente e precisa. Esse estágio de indiferenciação é vivido também corporalmente: onde termina seu corpo e começa o corpo do outro?

É a partir dos toques que acontecem na troca de fraldas, no banho, durante a amamentação/alimentação e dos intercâmbios afetivos, como as trocas de olhares, sorrisos, imitação de gestos e sons, que o bebê vai delineando os limites de seu corpo; assim como é a partir da articulação entre a presença e a ausência do adulto cuidador no atendimento das necessidades e desejos do bebê que ele vai compreendendo que o outro é um ser separado de si, que não carrega os mesmos desconfortos e confortos que ele.

Mas o que isso tem a ver com o desenvolvimento motor? Ora, para que a criança possa ter domínio e intencionalidade sobre seus movimentos, é preciso que ela tenha uma noção integrada de seu corpo, o que implica numa auto-imagem corporal capaz de se localizar no tempo e no espaço momento que indica, na criança, a presença de uma concepção de “eu”. Entretanto, até que essa percepção se estabeleça há um longo processo, isto é, a princípio, quando a diferenciação em relação ao outro, e consequentemente ao corpo do outro, começa, o bebê reconhece apenas pedaços de seu corpo, de tal modo que seu corpo é sentido como fragmentado, sem unidade.

Na prática isso pode ser observado na maneira como os bebês levam partes de seu corpo à boca, às vezes sua mãozinha, às vezes seu pezinho, pois é pela boca, num primeiro momento, que eles conhecem e experimentam o mundo, incluindo seu próprio corpo. Desse modo, a boca também funciona como um receptáculo que ajuda a contornar e delimitar “pedaços” do corpo, contribuindo para que estas partes tomem forma e concretude para o bebê, ainda que este não perceba de que maneira elas estão conectadas.

Pode ser observado também na maneira como os pequenos começam a explorar a noção de dentro e fora, daquilo que cabe ou não em diferentes recipientes quando brincam com potes e tampas de diversos tamanhos; quando demonstram interesse por objetos furados (como rolos de papel higiênico) ou buracos pelos quais conseguem colocar os dedos ou olhar através do vão, entre outros e, por fim, nas famosas brincadeiras de “cadê-achou”.

Nesta última, é curioso observar como quando a criança está escondida, por exemplo, debaixo de um pano/tecido, e consequentemente não vê os outros, imagina que estes também não a vêem, isto é, sua lógica se dá da seguinte maneira: “se os outros desapareceram do meu campo de visão então eu também não posso ser vista por eles”. Até que ela descubra que quando ela se esconde debaixo de um pano os outros continuam vendo-a ou quando ela se esconde atrás de uma cortina, mas deixa seu pé para fora os outros conseguem enxergá-la, leva um tempo de pesquisa e de compreensão acerca de seu próprio corpo. Vale ressaltar que estas brincadeiras também são importantes para a estimulação de outros aspectos do desenvolvimento infantil, mas que neste texto estamos abordando-as sob este enfoque específico.  

Assim sendo, para que toda essa organização psíquica aconteça, permitindo à criança o reconhecimento de seu corpo enquanto uma unidade, é necessária a participação de seus responsáveis através das atividades rotineiras e também da troca afetiva que lhe oferecem de modo a contribuir com sua integração corporal. Para isso é importante que a criança possa contar com cuidadores que promovam seu desenvolvimento e que garantam, no dia a dia, sua liberdade de movimento fora de berço, carrinho, sling, cadeirão de modo que os pequenos possam explorar e pesquisar o ambiente ao seu redor a partir de seu próprio corpo.

Enquanto isso, o sistema nervoso central vai se constituindo e o corpo do bebê vai ganhando musculatura, aquisição fundamental para a exploração acima mencionada: para rolar, sentar, ficar de pé, passar de uma posição à outra, a criança precisa também de força muscular. É nessa brincadeira exploratória livre, somada aos outros aspectos abordados, que ela fortalece sua musculatura ao mesmo tempo em que constitui seu “eu”.  

Diante deste contexto, é possível compreendermos atrasos e dificuldades do desenvolvimento motor como distúrbios tratáveis também a partir de um trabalho psíquico e, ao mesmo tempo, no caso de crianças com diagnósticos neurológicos que afetam o desenvolvimento motor, o investimento psíquico, através da estimulação e afeto de seus cuidadores, pode desenrijecer o quadro.

Por isso é importante que qualquer diagnóstico na primeira infância seja feito levando em consideração a plasticidade desse período do desenvolvimento, bem como a permeabilidade do psiquismo aos investimentos afetivos realizados. Em outras palavras, há que se ter cautela e muito trabalho com a família para que o diagnóstico não interfira na maneira como os pais (e demais cuidadores da criança) enxergam e tocam o filho, cuidando para que não contribuam para a manutenção de suas condições motoras, como a hipotonia ou a hipertonia por exemplo, transformando-as em estados permanentes.  

Desse modo, vemos que o desenvolvimento motor e a constituição psíquica do ser humano estão articulados de tal maneira que, do nosso ponto de vista, não é possível pensar um separado do outro (ainda que cada um deles tenha suas particularidades e atravessamentos que não necessariamente se vinculam). Assim, havendo necessidade, a ação conjunta de profissionais da saúde  que atuem em ambas as frentes fisioterapeuta, motricista, psicólogo, psicanalista, entre outros pode ser uma saída interessante e eficaz para se trabalhar nos quadros em que alguma questão da ordem motora se manifeste.

Independentemente da presença ou ausência de diagnósticos, é importante ressaltar que para que o desenvolvimento motor se dê da maneira esperada, necessitamos tanto dos estímulos físicos, sejam eles corporais, por exemplo através das mãos do adulto que dão suporte para os movimentos do bebê ou a presença de móveis baixos que lhe servem de apoio, como os estímulos afetivos, presentes nos toques e brincadeiras que se dão na relação com seus adultos de referência. Além disso, reforçamos que garantir momentos de liberdade através da pesquisa e exploração corporal e ambiental pelo bebê é outra forma de estímulo fundamental neste processo.

Imagem: Google.

Texto escrito por Silvia Bicudo.

A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.