Para muitos pais adotivos e pretendentes à adoção, a necessidade de contar ao filho sobre a adoção gera muita ansiedade e insegurança. Esses sentimentos podem ser vividos de forma tão intensa que alguns pais acabam protelando, ou não contando. Na minha experiência com essas famílias, verifico que os principais entraves estão relacionados a três aspectos: contar ou não contar, como contar e quando contar.

Em relação ao primeiro aspecto, mesmo que o artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegure que é direito da criança que foi adotada saber sobre suas origens, não deixando margem a dúvidas do ponto de vista legal, os pais que estão vivendo essa questão, podem se perguntar se é mesmo o melhor para o filho que ele saiba sobre a adoção. Muitos estudos da psicologia e psicanálise indicam que se um fato tão importante fica escondido, ganhando um status de segredo, de tabu familiar, muito provavelmente irá acarretar em sofrimento emocional, que, no caso da adoção, pode influenciar no comportamento da criança ou na dinâmica familiar – por exemplo, a criança pode ficar muito preocupada e atenta a tudo o que os pais falam; pode não ter tanta autonomia devido a fantasias de ser abandonada; os pais podem ficar receosos que alguém fale sobre a adoção e a fim de evitar essa situação acabam restringindo a convivência social; podem não permitir que a criança saia sem a companhia deles e o filho pode achar que os pais não confiam nela. Além disso, os estudos também afirmam que um vínculo construído sobre fatos verdadeiros é mais sólido.

Há situações em que a orientação e reflexão sobre os aspectos emocionais apresentados acima já são suficientes para que os pais se reposicionem e consigam falar abertamente sobre a adoção, mesmo que busquem apoio psicológico para sentirem-se mais seguros e amparados frente a qualquer dificuldade que possa surgir, com eles ou com o filho. Mas também há situações em que, mesmo que os pais possam compreender e concordar com a necessidade de contar a verdade, sentem-se tão ameaçados pelas dúvidas: “e se meu filho não aceitar os fatos e quiser buscar a família biológica?”, “e se meu filho me preterir?”, que acabam por adiar indefinidamente a conversa sobre como realmente formaram uma família. Nesses casos, é muito importante que os pais busquem ajuda especializada e possam ter um espaço de cuidado para eles próprios, em que possam identificar e superar as dificuldades atreladas a esses temores. Quer dizer, ao lançar luz no medo da reação do filho, muitas vezes, o que os pais encontram são temas difíceis de serem falados e assustadores de serem relembrados, como acontece nos casos em que tiveram que enfrentar dificuldades para engravidar antes de decidirem sobre a adoção, histórias pessoais de abandono, ou fantasias em relação às heranças biológicas do filho. É preciso cuidar dessas questões para que os pais se sintam fortalecidos e seguros em conversar honesta e abertamente com o filho sobre a adoção.

Nesse passo, dúvidas relacionadas a como contar passam a emergir. No imaginário social a cena que se forma para responder a essa pergunta é um momento único e especial em que os pais vão falar ao filho sobre a adoção. Não à toa, muitas vezes esse momento é nomeado como revelaçãoPara refletirmos sobre esse aspecto, considero interessante retomarmos o significado desse vocábulo. De acordo com o dicionário Michaelis, revelar significa “fazer conhecer (o que era ignorado ou secreto)” e podemos notar como no campo social a adoção carrega a ideia de segredo, de algo que não pode ser falado.

Importante dizer que a intenção de trazer à tona esse panorama, mesmo que brevemente, é para ressaltar a construção cultural da adoção no Brasil – aspectos esses que foram aprofundados por pesquisadores da área. Quando problematizamos uma questão podemos discriminar seus determinantes históricos, culturais e sociais, e a partir desse exercício podemos desnaturalizá-la e encontrar outras formas de compreendê-la.   

Nesse sentido, proponho trocar o verbo “revelar” por “contar”: contar a história da adoção. Uma história tem personagens e fatos. Em uma narrativa de famílias formadas através da adoção há o(s) pai(s), o desejo do(s) pai(s) em ter filho(s), a criança, o desejo da criança estar inserida em uma família, o encontro entre eles formando uma família, os pais biológicos da criança que não puderam cuidar dela, os cuidadores (do serviço de acolhimento ou família acolhedora), os outros cuidadores (dos diversos espaços pelos quais a criança estava vinculada), os outros espaços de circulação da criança, vínculos, afetos, relações que deixaram marcas, mesmo que inconscientes.

Revelar traz a ideia de algo pontual, algo que aconteceu somente no tempo passado, ao passo que uma narrativa introduz todos os tempos: o passado (dos pais e da criança), o presente (o processo de constituição dessa família) e o futuro (quais são os projetos que sonham juntos). A história que irá ser contada pode ir sendo criada, recontada, reinventada, permitindo que se respeite o outro tempo, o de elaboração dos filhos e dos pais.

Conversar com o filho sobre sua origem é importante em seu processo de desenvolvimento emocional, pelo qual todas as crianças passam. Na adoção, é preciso incluir nessa conversa a história pregressa dos pais e da criança. É importantíssimo que os pais possam estar abertos para conhecer, reconhecer e abarcar a história pregressa dos filhos. Esse pode ser um pedaço difícil para algumas famílias por diversos motivos. Entre eles, do lado dos pais, é preciso desmistificar a ideia do que é viver em um serviço de acolhimento e reconhecer a importância de se ter recebido esta forma de cuidado, valorizando as vivências da criança. Do lado dos filhos, algumas crianças temem que se forem adotadas irão perder tudo o que já viveram e as relações que já constituíram (inclusive, com amigos) e, o medo de que se algo der errado com a adoção, ficarão sem nenhum lugar e sem nenhuma história.

Nesse sentido, não existe um momento certo de quando contar. Se a adoção é entendida como um processo de filiação, vai se contando desde sempre. É comum que no dia a dia os pais se deparem com o crescimento do filho e, por exemplo, comentem “como você cresceu!”, nesse momento pode-se introduzir, “quando nos conhecemos…”. Ver fotos também é algo muito comum no cotidiano das famílias, sendo um momento rico para mostrar à criança como se conheceram – ainda mais se o álbum também contiver fotos da criança do período anterior à adoção. Algumas famílias encontram apoio em livros e filmes para explicar como acontece e o que é a adoção, e aos poucos vão podendo singularizar e falar deles próprios. Essas conversas podem provocar curiosidade no filho e levá-lo a formular uma pergunta. Ao que os pais respondem a essa pergunta, na linguagem utilizada pela criança e que ela é capaz de compreender, esse novo conhecimento é absorvido, elaborado e, possivelmente, ensejará outra pergunta. E assim, a criança segue elaborando essa história, que é constitutiva de sua identidade.

A importância de se contar sobre a origem do filho, independente da forma com que chegou, está apoiada na premissa de que os pais são como guardiões das memórias da vida da criança – especialmente dos fatos ocorridos na primeira infância. Através da narrativa dos pais e cuidadores, a criança constrói sua memória e constitui sua identidade. É comum que quando adultos, tenhamos dúvidas se realmente lembramos de algum fato ou se a memória foi formada através de imagens de fotos e de “sempre ouvir falar”. Geralmente essas são narrativas que foram contadas muitas vezes e que, de alguma maneira, dão referências a nós mesmos de quem somos. Por isso, é comum que os filhos peçam para os pais contarem algumas histórias de novo, e de novo, e de novo, sendo a história do nascimento como filho para uma família uma das mais importantes.

Imagem: Google.

Texto escrito por Carla A. B. Gonçalves Kozesinski.

A Carla é psicóloga (USP), psicanalista, mestre e doutoranda em psicologia clínica (USP). Tem formação em acompanhamento terapêutico (Céu Aberto), aprimoramento multiprofissional em saúde mental (FAPESP) e pós-graduação em psicanálise na perinatalidade e parentalidade (Instituto Gerar). Trabalhou durante nove anos na área da saúde mental e desde 2012 atua na Vara da Infância e Juventude. Foi membro fundadora do grupo Gesto-Rede Psicanalítica (2007-2016) e sócia da Ninguém Cresce Sozinho (2016-2018). Atualmente integra o Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da USP, atende em seu consultório na cidade de São Paulo e é coordenadora de serviços na Ninguém Cresce Sozinho.