A sistematização de alguns sintomas psíquicos sob o nome de autismo foi proposta por Leo Kanner em 1943. De lá para cá diversas áreas da saúde vêm se dedicando ao seu estudo e pesquisa, sendo este um tema que provoca divergências marcantes no modo como os diferentes profissionais (neurologistas, pediatras, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, entre outros) compreendem sua causa e tratamento.

Atualmente, a nomenclatura designada pelo DSM V* para se referir a um diagnóstico de autismo é TEA Transtorno do Espectro Autista apontando para suas multifacetas e denunciando que não podemos pensar em autismo no singular, como um único conjunto de sintomas, mas em autismoS, no plural, cujos quadros podem variar totalmente de caso para caso.

No âmbito das doenças mentais, o uso do diagnóstico a partir do DSM por médicos,  principalmente psiquiatras e neurologistas, como instrumento que orienta o tratamento do paciente, é protocolar. Todavia, uma das críticas que podemos tecer à tal modelo, é que este acaba por desconsiderar as particularidades de cada caso, bem como por enrijecer a pessoa diagnosticada no lugar de doente.

Independentemente das discussões que atravessam a escolha desta nomenclatura, de sua etiologia e outras tantas questões polêmicas referentes a esta temática, há um consenso quanto à importância de um trabalho multi e interdisciplinar que contemple sua diversidade, convidando os profissionais da saúde e educação a dialogarem constantemente.

Nesse sentido, a proposta deste texto é apresentar uma das formas de compreensão acerca deste tema e, a partir daí, expor de que maneira entendemos que a psicanálise pode contribuir para o desenvolvimento de uma criança que apresenta sintomas considerados do espectro autista. É importante ressaltar, porém, que não só entre as diferentes áreas da saúde, mas também dentro do próprio meio psicanalítico, há diferentes olhares para estes casos, sendo interessante que todos os profissionais envolvidos compartilhem o mesmo referencial teórico.

Essa explanação inicial é importante para que o leitor esteja ciente de tal diversidade e possa ficar livre para se identificar ou não com a nossa abordagem, que começa por se diferenciar de outras compreensões a seu respeito na medida em que questionamos a possibilidade de se estabelecer um diagnóstico fechado quando alguns sinais de risco ou mesmo sintomas são observados durante a primeiríssima infância. Isto é, sendo a primeira infância o período de maior plasticidade neuronal, não seria honesto, nem justo, reduzirmos o paciente a seu diagnóstico, vez que a intervenção precoce pode promover e provocar mudanças relevantes em muitos transtornos que surgem nesse período do desenvolvimento humano, entre eles o TEA.  

Diante deste contexto optamos por dizer que o autismo é um estado e, enquanto tal, é passível de modificação, especialmente durante esse período do desenvolvimento. Vale ressaltar que essa postura nos distancia da lógica que reafirma o autismo como uma categoria diagnóstica estática e nos aproxima da criança em questão: ao ouvirmos cada um de seus sintomas como porta vozes de sua subjetividade, estamos construindo oportunidades para que hajam mudanças no rumo de sua constituição psíquica.    

Assim, essa posição em si já é uma primeira intervenção no âmbito familiar: ao não validarmos o diagnóstico prévio diante dos pais que nos procuram e afirmarmos a importância da intervenção precoce, estamos ajudando-os a manter brechas que os incentivem a ver o filho para além do autismo, o que fará com que eles invistam, junto com a gente, na criança a partir de outras expectativas. É certo que, receber um diagnóstico, após uma longa fase de angústia e incerteza, pode trazer um efeito importante de alívio tanto para os pais como para os profissionais por eles consultados, pois, ao identificarmos o problema, podemos pensar em seu tratamento. No entanto, receber um diagnóstico também pode acarretar um efeito secundário, neste caso: “se eu já sei que meu filho é autista, é só isso que eu enxergarei nele, associando qualquer comportamento ao TEA, deixando de ver outros aspectos da criança e muitas vezes deixando de apostar em seu desenvolvimento.

Quando recebemos em nosso consultório uma criança encaminhada já com um diagnóstico de TEA, optamos por responder aos pais que a partir de nossa observação, de fato a criança apresenta alguns sinais de risco típicos, mas que através do trabalho da psicoterapia psicanalítica (que será discutido mais adiante) tais sinais podem retroceder. Mas afinal que sinais são esses?

Alguns dos mais evidentes, mas não únicos, indicadores de risco de autismo são referentes ao processo de socialização da criança e, consequentemente, ao desenvolvimento da linguagem enquanto uma das principais características humanas que nos permite viver em sociedade. A linguagem, enquanto comunicação, implica diretamente na relação com um outro, alguém que possa escutar, responder, interagir, interrogar, etc. Vale ressaltar que o desenvolvimento da linguagem, até se chegar à fala verbal e inteligível, tal qual a reconhecemos socialmente, é fruto de um processo que se inicia já nos primeiros meses do bebê por exemplo através de sua possibilidade de procurar, responder e manter contato visual.

Desse modo, crianças com TEA geralmente são pouco ou nada receptivas à interação com outras pessoas, preferem estar sozinhas e tendem a ter um repertório de fala muito reduzido ou completamente esvaziado. Além disso, o brincar dessas crianças costuma ser “empobrecido” e automatizado, o que significa uma dificuldade de fantasiar que acaba por impedir brincadeiras de faz de conta, privilegiando comportamentos estereotipados, isto é, repetitivos, como por exemplo enfileirar objetos. E ainda, tais fatos podem contribuir em algumas situações tanto para que outras crianças não reconheçam tais brincadeiras como atrativas, quanto para o estranhamento do adulto que a acompanha, promovendo desencontros e favorecendo a manutenção de seu isolamento.    

Para ilustrar esse cenário nos valeremos do recorte de um caso clínico apresentado por Melanie Klein, psicanalista inglesa, em 1930. Apesar da psicanalista não ter recorrido a esse caso para falar sobre o autismo, os comportamentos apresentados por Dick e narrados por ela, podem nos ajudar na visualização de uma criança com TEA.

“… um menino de quatro anos que, pela pobreza de seu vocabulário (…) estava no nível de uma criança de 15 ou 18 meses. Estavam quase completamente ausentes a adaptação à realidade e as relações emocionais com seu ambiente. Com exceção de certo interesse especial, ao qual me referirei em seguida (“… trens e estações ferroviárias, pelas maçanetas das portas, pelas portas e pelo movimento de abri-las e fechá-las”) não tinha quase interesses, não brincava e não tinha contato com seu meio ambiente. Na maior parte do tempo articulava sons ininteligíveis e repetia certos ruídos. (…) Outrossim repetia corretamente as palavras mas continuava repetindo-as de forma incessante e mecânica… ” (A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do Ego. In: “Amor, culpa e reparação e outros trabalhos”, Melanie Klein, p.298-299, 1930).

A partir dessa passagem podemos imaginar a dificuldade do estabelecimento de uma relação entre Dick e as pessoas de sua convivência, já que aparentemente o pequeno não demonstra interesse em interagir com seu entorno de modo a compreendê-lo e ser, por ele, compreendido, ficando restrito ao universo dos trens, maçanetas e dobradiças, e indiferente às pessoas e acontecimentos ao seu redor.

Retomando a ideia de que a capacidade de se comunicar atravessa diretamente a maneira como nos relacionamos, é importante lembrar que a participação do adulto no desenvolvimento da linguagem de um bebê é fundamental, na medida em que é ele quem empresta à criança um repertório verbal carregado de sentidos e significados, quando ela ainda não possui. É através da “tentativa e erro” que os adultos de referência da criança vão propondo interpretações àquilo que ela manifesta, como o porquê de determinado sorriso ou o motivo de determinado choro, respondendo às necessidades que ela apresenta. Desse jeito, ao mesmo tempo em que o adulto nomeia para a criança aquilo que ele imagina que sejam suas sensações e sentimentos, tais manifestações da criança ganham, para ele valor de comunicação.    

Por isso, principalmente quando a criança apresenta dificuldades de se relacionar e de se comunicar, como nos casos de crianças com sinais de risco de autismo, a participação de outras pessoas que possam se ocupar dessa função, que implica em suportar a intensa angústia e frustração de conversar com ela mesmo que ela não responda ou não responda conforme o esperado, é de extrema relevância.    

O trabalho do psicanalista muitas vezes começa por aí. É justamente por apostar na capacidade da criança com sintomas autistas em desenvolver alternativas ao seu modelo relacional padrão, que ele pode conversar com ela acolhendo e legitimando suas respostas e comportamentos “não convencionais”; como no caso do pequeno Dick, seu interesse por trens ou seu comportamento de repetir palavras ou emitir sons ininteligíveis. Ao compreender os sintomas da criança como interesses e atitudes que dizem de sua singularidade e não enquanto comportamentos aleatórios, o psicanalista visa se aproximar do mundo particular da criança, convidando-a também a compartilhá-lo com ele. Isto é, ao mesmo tempo em que se insere em seu contexto, cria a oportunidade para que ela participe do seu.     

Essa postura, no entanto, não deve ficar restrita à atividade do psicanalista, já que a criança com TEA convoca a todos que com ela convivem a inventarem novos jeitos de se comunicar e estar no mundo. Por isso, o trabalho com seus pais e demais adultos de referência (outros familiares, professores, etc.), através de sessões com o casal e/ou reuniões em sua escola, também é fundamental para a remissão dos sintomas iniciais.

Quando todos os responsáveis pelo desenvolvimento da criança podem trabalhar juntos, articulando suas intervenções, seja através de sessões familiares, discussões de caso e assim por diante, é que conseguem ajudar a criança e seus pais a estabelecerem relações nas quais a comunicação favorece trocas efetivas que atendam as necessidades de um e de outro, apresentando à criança as vantagens de compartilhar suas vivências.

*DSM V: (em português) Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, usado como referência no meio médico para se estabelecer um diagnóstico clínico.

Imagem: Google.

Texto escrito por Silvia Bicudo.

A Silvia é psicóloga (PUC-SP), psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae) e acompanhante terapêutica em inclusão escolar. Com formação em Psicologia Perinatal e Parental (Instituto Gerar), fez parte da equipe da Ninguém Cresce Sozinho entre 2016 e 2018.