Tenho acompanhado algumas mães e pais bastante angustiados porque seus filhos, à época do desfralde, aprendem com êxito a usar o vaso sanitário ou penico para fazer xixi, mas pedem a fralda para fazer cocô – ou o fazem na calcinha/cueca, ou mesmo no chão. Com raras exceções, há crianças que também retém o xixi:

“Quando coloco a fralda, nem chego a fechá-la direito e a pequena já vai soltando o xixi, às vezes faz cocô. Enfim, relaxa. Isso já dura uns três meses. Na escolinha todos os coleguinhas, inclusive os mais novos, já fazem as necessidades no vaso. Parece que ela é a única que teve essa dificuldade. Me sinto cansada e com a sensação de fracasso por não conseguir vencer esta etapa que para os outros pareceu tão simples”.

A maioria dessas crianças não tiveram o processo de retirada das fraldas iniciado em idade precoce, ou seja, antes dos 18 meses, quando a criança ainda não tem maturidade neurofisiológica para aprender a controlar os esfíncteres, músculos responsáveis pela retenção e expulsão das fezes e urina (não me refiro aqui às crianças submetidas ao treinamento assistido desde as primeiras semanas de vida – elimination comunication, em livre tradução, comunicação da eliminação, o qual se baseia na observação dos sinais de eliminação que emanam do corpo do bebê para que este possa ser colocado no penico ou vaso para fazer xixi ou cocô). Também, são crianças que não apresentam questões de natureza fisiológica ou alimentar passíveis de resultar tais comportamentos. Há aquelas que nunca usaram o sanitário, e outras que tiveram êxito no uso do vaso ou penico, mas, sem motivo aparente, recuaram, independente de fazer uso da fralda noturna:

“Meu filho tem 4 anos e 4 meses, não usa mais a fralda para o xixi, nem a fralda noturna, mas nunca fez cocô no vaso ou penico, nem uma única vez. Sempre pede a fralda e se eu não a coloco ele se segura, consegue ‘trancar’ por vários dias. Ele já chegou a ficar 8 dias sem evacuar, até a gente ceder e colocar a fralda novamente e aí sente muita dor. Ele não faz na cueca, e esteja onde estiver, segura até voltarmos para casa para colocar a fralda e se trancar no quarto”.

“Antes ele pedia para fazer cocô, mas de uma hora para a outra começou a evacuar na roupa e nem gosta que eu o toque no momento que está fazendo cocô, pois o convido para ir ao banheiro, ele até segura de tanto medo”.

Mudanças significativas na vida da criança, como o nascimento de irmão ou a entrada na escola, podem dar uma bagunçada no processo de desfralde, resultando em escapes, retenções e retrocessos. Todavia, os pontos que aqui apresento recaem sobre as situações em que aparentemente tudo corre bem com a criança, com exceção à recusa em usar o vaso sanitário ou o troninho para fazer cocô – e mais raramente, xixi.

Embora des-fraldar signifique separar-se das fraldas, não é apenas esta separação que está em jogo. O processo de desfralde implica em mudanças na relação da criança com o próprio corpo e do adulto com o corpo da criança. Tais mudanças devem permitir que a criança possa fazer aquilo que ela já é capaz de fazer por si só, o que, invariavelmente, resulta em um grau maior de independência; portanto, separação, em relação ao seu ambiente. Assim sendo, vale sublinhar que para que o desfralde possa ser iniciado e prossiga da maneira mais tranquila possível, é fundamental que o adulto possa estar atento à estas mudanças e às situações nas quais a criança já pode fazer suas coisas por conta própria. O desfralde dá à criança mais autonomia, mas ele só tem êxito se a criança puder ser autônoma naquilo que seu desenvolvimento já a permite fazer. De nada adianta dispender todos os esforços para ela deixar as fraldas, se ela não pode, por exemplo, alimentar-se ou vestir-se sozinha, guardar seus pertences à sua maneira, explorar seu próprio corpo, entre outros.

Para além das marcas singulares presentes na relação adulto-criança no que tange a separação e a autonomia – as quais só temos acesso conhecendo a família em questão –, encontramos, com certa frequência entre as crianças que apresentam dificuldade para fazer uso do vaso ou penico, a fantasia de que as fezes são extensão de seu corpo. Isso pode ser observado pelo temor do barulho da descarga ou pelo medo de cair na privada ou perder parte de si.  Em geral estas crianças ainda precisam da permanência do objeto para poder se separar dele, pois do contrário ficam muito angustiadas:

“Todas as vezes que ele tentou fazer cocô, ele chorava; era muito desconfortável para ele. Acredito que ele não faz porque sente dor ou acha que o cocô é dele. No final fizemos pressão demais, tadinho. Conversei com meu marido e resolvemos deixar no tempo dele, sem pressões, para ver como ele reage. Estimular sem pressionar; se tiver que ser na fralda ou na cuequinha, tudo bem. Porque está ficando muito séria a coisa, às vezes ele prende até o xixi”.

Diante dessas situações, o melhor é não forçar a barra da criança, dizendo que isso é tolice ou algo do gênero – para ela não é. No pensamento da criança, se “coisas” podem passar pelo vão que leva ao esgoto, então bens estimados, como o cocô, ou ela própria, a criança, também poderão passar por lá. Evitar acionar a descarga na frente da criança ou imediatamente após o descarte do cocô costumam ser boas opções para as crianças que temem o barulho da água descendo pela caixa sanitária e indo esgoto afora. Para as que receiam cair no vaso, pode-se oferecer um penico ou um redutor de assento e mostrar, a partir da colocação de um objeto grande, que ele não passa pelo vão que leva ao esgoto. Para as crianças que têm dificuldade em se separar do cocô e/ou que buscam entender o que acontece com ele depois de dada a descarga, uma possibilidade é deixá-la colocar um pedacinho de papel higiênico no vaso e dar descarga. Quando se separar do cocô é uma tarefa difícil, uma alternativa é ficar ao lado da criança para que ela possa se despedir dele, dando o clássico tchau para o cocô. Embora essas dicas possam ser úteis, vale sempre lembrar que cada situação é muito particular, e por vezes podem ser necessárias mais de uma ação ou estratégia para ajudar a criança a passar por esse processo.

Há crianças que topam se sentar na privada ou no penico, conseguem urinar, mas não conseguem evacuar. Como a urina se mistura com a água da privada, nem que seja no momento do seu descarte, a criança não vivencia seu xixi como uma “perda” e, por isto, não enfrenta a mesma dificuldade enfrentada com o cocô.

Sem conseguir defecar na privada ou penico, essas crianças costumam solicitar uma fralda para que nela possam evacuar. Quando a oferta da fralda é vetada, restam-lhe algumas alternativas: evacuar na fralda noturna (hábito antes inexistente), na cueca/calcinha, no chão ou, a pior de todas, reter as fezes a ponto de, em casos extremos, a criança necessitar fazer uso de supositório ou lavagem intestinal. Na retenção das fezes as mesmas ficam endurecidas, podendo causar dor ou mesmo fissura anal. Caso a criança relate dor ao evacuar é importante fazer uma avaliação médica, inclusive para verificar se há necessidade de alteração na dieta alimentar ou mesmo indicação de uso de óleos minerais ou medicamento.

Enquanto a recusa para usar o “trono” é temporária, os adultos em geral suportam-na. Mas, aos poucos, conforme as alternativas de negociação se esgotam, a situação vai se tornando insustentável, especialmente para os pais, que se sentem cansados, fracassados e impotentes diante de uma situação que parece não ter saída diferente de aguardar o amadurecimento da criança. O estresse toma conta de todos. A pressão diante da criança pode aumentar e o objetivo de deixar as fraldas não ser atingido. Cabe-nos, então, a pergunta: Quem deseja que o cocô seja feito no “trono” e por quê? Certamente a resposta será o adulto, responsável por transmitir à criança a norma social, e que se vê diante de cobranças que se mostram principalmente pelas comparações ou pela equivocada ideia de que a criança que não deixa as fraldas é menos esperta, inteligente e capacitada.

Apesar de a recusa em fazer cocô na privada ou no penico apresentar significados particulares para cada criança e família, não podemos esquecer que o controle dos músculos esfincterianos é uma experiência de controle – físico, mas também emocional – vivida intensa e prazerosamente por todas as crianças. Não nos esqueçamos, também, que xixi e cocô são nossas únicas produções que ninguém “tira” da gente, a não ser de modo muito invasivo. Por isso, por mais que o uso do troninho possa ser ensinado, somente a criança será capaz de decidir quando, onde e se quer fazer xixi e cocô a partir do desejo do outro e/ou nos lugares determinados pela cultura.

Se de um lado tentamos (e precisamos) ensinar uma regra sem desrespeitar o tempo e as características da criança, de outro, corremos o risco de deixar que o tempo cronológico se encarregue de uma situação que, em geral, aponta para uma dinâmica em que a criança teme perder o controle que descobriu ter, não apenas no que se refere aos esfíncteres, mas principalmente de suas outras experiências. Como este é um dos pontos centrais entre as crianças que fazem cocô na fralda, cuidado: quanto maior a pressão, maior será a resistência da criança em deixar a fralda, já que esta é uma maneira de lutar pelo exercício de seu próprio controle e autonomia. Em outras palavras, se a criança vive o controle como vindo de fora, ela irá se opor a isto na tentativa de afirmar que quem quer e pode controlar é somente ela.

Diferentemente do uso do vaso sanitário ou penico, a fralda não apresenta à criança nenhuma ameaça. Ela é conhecida. Dá a segurança necessária para relaxar e evacuar. Ao pedi-la, a criança tem uma atenção diferenciada no momento do pedido, atenção esta que ela pode temer perder. Ao mesmo tempo, na fralda, o cocô continua junto ao seu corpo, mesmo que por um tempo mínimo, não ficando escancarado ao olhar da criança e de quem está com ela, ativando a possível fantasia de que uma “parte sua” se desprende de seu corpo. Além disso, estando o cocô na fralda, a criança tem a chance de presentear quem ama com sua “obra” e, por consequência, em sua fantasia, garantir esse amor.

Seja qual for o motivo subjacente ao uso da fralda para fazer cocô pelas crianças que já conseguem controlar os esfíncteres, é importante que os adultos possam avaliar quais são seus temores e fantasias relacionados às situações de separação, bem como possam facilitar à criança reconhecer e falar sobre os seus. Disponibilizar para estas crianças materiais plásticos, que se transformam e permitem fazer melecas, como água, areia, terra, argila, tinta e massinha é de extrema riqueza, já que, ao explorar livremente estes materiais, a criança fica no controle da brincadeira, tendo autonomia para criar, produzir e ser protagonista de seu enredo. Brincadeiras com bonecos e histórias costumam facilitar a conversa, uma vez que o foco sai da pessoa da criança e vai para um personagem com o qual ela pode se identificar.

O desfralde é um processo que convoca adulto e criança a rever sua relação, o que, nesta faixa etária, inclui questões relativas à dependência e independência, estar junto e separado, ser bebê ou criança já grandinha. Para que ele possa ser vivido como crescimento e ganho de mais autonomia é preciso que algumas coisas possam ser deixadas para trás. Isso, às vezes, não é fácil. Isso, quase sempre, é o grande enrosco do desfralde.

Nota: Texto com o mesmo título foi publicado pela primeira vez em 17/06/2013 no antigo blog Ninguém Cresce Sozinho. Esta nova versão, contudo, mais do que uma revisão do texto anterior, traz novas informações e reflexões. As citações destacadas em itálico são falas de mães ou pais.

Imagem: Pixabay.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

Para mais reflexões e informações sobre desfralde, participe da roda de conversas desfralde sem atropelos ou agende uma consulta de orientação a pais.