A criança faz birra; a culpa é dos pais que não conseguem colocar limite. A criança é malcriada; a culpa é dos pais que não dão educação. A criança chora porque quer algo; a culpa é os pais que a mimam demais. A criança não come direito; a culpa é dos pais que a deixam comer porcarias. A criança vai mal na escola; a culpa é dos pais que não acompanham a lição de casa. A criança não dorme a noite toda; a culpa é dos pais que não estabelecem rotina. A criança manifesta qualquer coisa que escapa ao padrão pessoal, familiar ou social: a culpa recai sobre os pais, como se eles fossem os únicos responsáveis pela maneira como a criança se relaciona com o mundo.

Uma criança que faz birra, é respondona ou chora está comunicando alguma coisa que não consegue colocar em palavras (ou as palavras lhe são insuficientes); pode até ser que a comunicação diga respeito aos pais, algo como “deixa eu fazer do meu jeito”. Uma criança que come porcaria não o faz só porque os pais a autorizam, mas porque às vezes nem mesmo eles sabem ou têm acesso a uma alimentação saudável (ela custa mais, sabemos), ou conseguem se ver livres do apelo infantil decorrente do bombardeio da publicidade de alimentos dirigidas às crianças. Uma criança vai mal na escola por muitas razões; falhas do próprio sistema de ensino pode ser uma delas. Uma criança que não dorme a noite toda talvez até tenha – ou esteja com – a rotina meio bagunçada, mas seu sono pode não ser – ou estar sendo – contínuo porque “fantasmas” típicos da idade podem estar perturbando-a no momento de descanso.

O perigo da generalização – a culpa é dos pais –, como tão bem coloca a escritora nigeriana Chimamanda Adichie no TED O perigo de uma história única, é que ela negligencia muitas outras histórias que nos fazem ser quem somos e cria estereótipos do que somos. A história única, sempre incompleta, transforma a história em definitiva, incontestável e imutável.

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg&feature=youtu.be[/youtube]

Quando a história se define como “a culpa é dos pais”, ignoramos quem é a criança; ignoramos que criança foram os pais. Ignoramos também a realidade da família, da sociedade e da cultura. Ignoramos, no país em que vivemos, que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”, conforme o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Apontar o dedo para os pais acusando-os pelo que fazem ou deixam de fazer pelos filhos, é se eximir da co-responsabilidade pela situação e não olhar para as próprias fragilidades. É colocar-se numa posição de imunidade e superioridade, seguindo o princípio do “nkali”, palavra da tribo Igbo que significa, pela tradução de Chimamanda Adichie, “ser maior do que o outro”.  Culpabilizar os pais é se colocar no lugar de quem vê de cima sem esticar as mãos, deixando o tempo da infância escorrer sem amparo e sem a possibilidade de fazer diferente. Por uma criança, todos somos responsáveis.

Imagem: Google.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

1 Comments

Comments are closed.