Ouvi de uma menina beirando os 8 anos que seu sonho era fazer uma boneca, não importava como ela fosse. Podia ser de papel, de pano, de milho, como a que fez nas férias com a prima que mora no interior do Ceará (as mesmas que sua mãe fazia na infância). Sua fala me surpreendeu e me encantou. Ela estava na contramão do desejo da maioria das meninas de sua idade por bonecas industrializadas.

Aqui, não vem ao caso o significado deste desejo, mas o episódio me fez pensar no quanto as crianças de hoje estão sendo isentas dos processos de feitura. Tudo vem pronto, processado – pela indústria ou outras pessoas.

Durante um bom tempo os brinquedos foram construídos pelas crianças, com sua participação ou pelo menos com sua presença ao lado de quem o executava. A criança tinha a oportunidade de acompanhar, se não todo o processo, uma parte dele. À criança eram transmitidos conhecimentos sobre como fazer, bem como histórias que envolviam tal brinquedo ou brincadeira. O desejo de ter atravessava o fazer e a espera.

Isto não se limitava à confecção de brinquedos. A criança vivenciava começo, meio e fim, antes e depois, nas pequenas coisas cotidianas. Para chupar laranja era preciso descascá-la. Para comer bolo, fazê-lo. Para ter um cachorro, esperar que alguma cadela pudesse parir. Para morar na casa própria, era possível vê-la ganhando forma dia após dia.

Hoje, não é surpresa para ninguém uma criança não saber descascar e chupar laranja; não saber que bolo é feito com manteiga, farinha, ovo ou ingredientes que os substituam; não saber que cachorro mama na cadela e que para construir uma casa se usa tijolo, cimento e outros materiais.

Em um mundo no qual nossas necessidades e desejos vêm prontos (até o cachorro sai de vitrine!) – ou são sempre possíveis de serem realizados – as crianças estão sendo eximidas da participação nos processos das coisas mais banais da vida. O tempo é do instantâneo, do imediato, do sem espera.  Por isto mesmo, o tempo é do desprezível, do descartável, do usa e joga fora – de caixas longa vida às relações afetivas (para não dizer a própria vida). 

Sei que existe um passado que não volta mais e que a vida contemporânea está cheia de privilégios que antes não existiam – poder terminar uma relação quando se percebe que não vale à pena levá-la adiante, falar “cara a cara” com quem mora distante, ter uma doença curada, são exemplos de uma infinidade de coisas boas que a contemporaneidade tem nos permitido e que não devem ser esquecidas.

Qualquer época é regada de aspectos positivos e negativos. No entanto, penso que é primordial indagar como nossas crianças enfrentarão os desafios que a vida apresenta, se estamos mergulhados num mundo em que raramente é dado tempo de maturação; ou seja, tempo para que um processo aconteça, com todas as etapas envolvidas, inclusive a resolução de dúvidas, conflitos e o encontro de soluções.

Creio que existe uma correlação entre o tempo do instantâneo e as sensações de esvaziamento e de falta de sentido vivenciadas por muitos, inclusive crianças, que têm se deprimido ou apresentado outros sintomas porque não participam ativamente de suas próprias vidas. Há sempre um gestor externo, do publicitário à família e a sociedade. Há sempre um preenchimento do que parece vazio ou faltante.

No meu entender, há dois mecanismos que se somam a este tempo atual, e por isso merecem atenção:

  1. A existência de certa equidade entre ser criança e ser adulto. Quando o adulto não pode ou consegue assumir seu papel de adulto, fica mais difícil atender às necessidades da criança e, portanto, ter mais claro quais são os limites, deveres e responsabilidades de cada um.
  2. A desobrigação da criança na participação de pequenas coisas do dia a dia. Afinal, como diz a música de Arnaldo Antunes, criança não trabalha, criança dá trabalho (se de um lado a música é uma defesa à infância sem trabalho em seu sensu stricto, de outro, ela permite lembrar que é muito comum vermos o adulto fazendo pela criança, criando uma relação de muita dependência e pouca autonomia).

Os processos são constituídos de ciclos, ordem e limites. Quando abolidos da vida das crianças (e adultos), fica muito difícil suportar o que não vem pronto e imediatamente, o que pode gerar muito sofrimento.

Não há como combater o tempo, mas é possível que as crianças sejam ativas nos processos que envolvem sua vida. Para isso, é preciso incentivar sua participação nos processos que a envolve direta e indiretamente. É preciso que criança possa ser criança e que adulto seja adulto. É preciso permitir a criança testar, experimentar e errar. É preciso estar junto, suportando o tempo da espera e do ritmo de cada um.

Nota: Este texto, publicado pela primeira vez em 07/10/2013 no antigo blog Ninguém Cresce Sozinho, foi revisado e alterado minimamente em seu conteúdo original pela autora.

Imagem: Blog Lá de casa.

Sobre a Patrícia L. Paione Grinfeld.

One Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

5 × cinco =